CRISE SOCIAL E CUIDADO DE SI EM TEMPOS DE PANDEMIA – FOUCAULT E A PSICANÁLISE

Auterives Maciel Júnior

INTRODUÇÃO

Crise social e pandemia não são eventos coincidentes. A crise social já se encontrava presente quando a pandemia do COVID-19 apareceu. Aliás, a situação de crise já se encontrava em curso no cenário político brasileiro muito antes do surgimento da pandemia. De uma certa maneira, a crise social no Brasil já se estende desde a transição do governo e parece repetir o que vez ou outra ocorre nas transições políticas que marcam a instabilidade peculiar deste país.

Essa crise atesta um certo cenário configurado por um individualismo exacerbado presente na sociedade contemporânea. Ou seja, a crise do social é a expressão de um individualismo em uma sociedade que valoriza o indivíduo em detrimento dos contatos sociais. Em um período de crise – em que as ruas se tornam pouco frequentadas –, essa valorização da vida individual faz o indivíduo imaginar os espaços públicos, os meios abertos para o contato provisório, como cada vez mais perigosos. A fragilidade dos vínculos duradouros, a desertificação das grandes avenidas, a aglomeração em bares e locais para uma diversão contingente são indícios de um grande recolhimento ocorrido no seio do campo social.

As ruas se tornam desertas no meio da noite e o recolhimento se impõe como tendência geral do comportamento mediano. Os seres humanos se afastam, usam máscaras para evitar a propagação do vírus e sucumbem diante das notícias calamitosas que ditam o destino das suas condutas e a maneira como devem se comportar na situação de pandemia. Nesse aspecto, a pandemia acentuou a crise que já existia.

Para impedir a propagação do vírus, o isolamento social é indispensável. A situação de pandemia expõe a vulnerabilidade de um indivíduo que sente a ameaça real de vida pelo medo da contaminação. E é nesse isolamento que surge a possibilidade de se problematizar, de se repensar o cenário crítico atual para cuidar efetivamente de si, mudando o modo de vida anterior.

A posição atual da pandemia já nos é conhecida: o Brasil – nas suas incertezas em relação às providências a serem adotadas diante da crise pandêmica – foi negligente quanto ao isolamento e apresenta, agora, o segundo maior índice de contaminação e morte no mundo, ficando apenas atrás dos índices dos Estados Unidos da América. Sendo verdadeiro que, no Brasil, as incertezas quanto às providências a serem adotadas advêm da falta de informação à população, deve-se, igualmente, considerar que tais incertezas são incrementadas pelos atos irresponsáveis do atual governo, que entra inadvertidamente em conflito com a mídia, pela minimização da pandemia que até então se anuncia. O resultado político não pode ser mais desastroso: o governo se mostra autoritário; a mídia se impõe na sua convicção crítica, e a população – exposta aos conflitos ideológicos que se manifestam no decorrer da evolução da pandemia – mostra-se, mais uma vez, indefesa diante do perigo real.

Partindo da premissa de que é na resistência que se pensa e se problematiza, talvez a ameaça de desamparo que a pandemia acentua torne possível uma prática efetiva de si, decorrente do isolamento social que faz com que nós repensemos a crise atual com o olhar da vulnerabilidade e do risco real. Entretanto, para que tal proposta seja devidamente consolidada, é necessária uma sutil avaliação da ética do cuidado de si nos termos propostos por Michel Foucault nos últimos momentos da sua obra. Tal ética – por ele denominada como uma prática (FOUCAULT, 1988) ou um cuidado de si (FOUCAULT, 2014) – será atualizada no nosso trabalho no contexto do quadro atual da pandemia.

Além disso, advogamos no presente trabalho uma nova modalidade no tratamento psicanalítico, que faz da prática ou de um cuidado de si temas urgentes diante da crise pandêmica atual. Com isso, mostramos, na nossa conclusão, como a psicanálise pode se situar diante da pandemia por intermédio de uma ética do cuidado que seja devidamente implementada na distância exigida pela crise redobrada.

Sobre a diferença entre moral e prática de si: a ética do cuidado de si em Foucault Ao abordar a sociedade grega no campo específico das práticas sociais, Foucault, em um livro intitulado A história da sexualidade – Volume I – O uso dos prazeres (FOUCAULT, 1988), propõe uma curiosa distinção entre moral e prática de si, com o propósito de analisar as condições de possibilidade das ações livres dos homens gregos na cidade.

Nessa obra, Foucault propõe três abordagens para a compreensão da moral buscando depreender delas uma abordagem das práticas de si: assim, ele quer que compreendamos o universo moral a partir de um código prescritivo; evoca uma pequena abordagem das condutas morais definidas pela sujeição do indivíduo ao código; procura consolidar a existência de um modo de vida moral na esfera da conjunção existente entre a vigência do código e o ajuste indispensável das condutas ou dos comportamentos dos seres humanos; e problematiza, enfim, o modo de sujeição daquele que se atém ao código moral, para encontrar as condições de uma prática de si.

Ao explicar a moral como um código, Foucault adota o seguinte procedimento: diz que por moral devemos entender “um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas, etc.” (FOUCAULT, 1988, p. 26). Observa, logo em seguida, sobre a possibilidade de essas regras e esses valores serem bem explicitamente formulados em uma doutrina coerente, mas admite, igualmente, a possibilidade de serem transmitidos de uma forma difusa, constituindo “um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo assim, compromissos ou escapatórias” (idem, ibidem).

Em contrapartida, a moral pode ser abordada no nível do comportamento real dos indivíduos em relação às regras e aos valores que lhes são propostos. Nesse nível, a moral deve ser apreendida na maneira pela qual os indivíduos se submetem mais ou menos a um princípio de conduta “pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores” (idem, ibidem).

Sendo assim, o estudo desse aspecto da moral deve determinar de que maneira, e com que margens de variação ou de transgressão, os indivíduos ou grupos irão se conduzir em referência a um sistema prescritivo e codificado. Como esse sistema pode ser explícita ou implicitamente dado em uma determinada cultura, convém que o estudo da ação moral seja estendido à esfera de uma “moralidade dos comportamentos”.

E, aqui, torna-se necessária uma terceira abordagem: seja pelo viés do código, seja pelo viés do comportamento, um sistema moral se erige como um conjunto de normas prescritivas que constituem códigos de regras a serem devidamente efetuados pelas ações dos indivíduos que a ele se encontram submetidos.

Claro está que, nessa abordagem histórica da condição da ação moral, duas coisas devem imediatamente serem observadas: que em Foucault uma visão moral da existência só tem eficácia histórica quando o código prescrito pelas suas regras for efetivado pelas ações dos seres humanos; e que as prescrições de tal código só ganharão validade universal no contexto histórico, quando dele for possível derivar a ilusão de uma lei universal erigida à condição de mandamento.

O que Foucault pretende com tais observações? Compreender a possibilidade de um universo moral, levando em conta o fato de ele se instituir como um código sempre histórico; e mostrar, de uma forma contundente, que as leis são, na realidade, universalizações derivadas de um código e podem ser abandonadas caso a sua eficácia seja posta, com o tempo, em questão. Ou seja, a lei é uma construção epistemológica sustentada por certos sistemas de pensamento que querem impor uma visão moral da existência aos seres humanos. Para o referido autor, uma boa pesquisa histórica pode perfeitamente demonstrar o seu caráter arbitrário, a sua contingência histórica e o seu limite processual.

Ora, esse é um bom motivo para entendermos por que esse autor irá abandonar a noção universal de lei, para explicar o surgimento da ação moral buscando a sua condição de possiblidade no campo entreaberto pelo código e implementado pelas condutas humanas.

Entretanto, se ele compreende perfeitamente que a lei vigora na cidade e que o respeito a ela supõe um conjunto de crenças construído no entorno daquilo que ela prescreve, é porque ao fazer uma abordagem genealógica da lei moral, Foucault pôde compreender que ela era uma invenção justificada por uma visão moral da existência, que a tornava necessária como delegada de um princípio universal posto como um bem supremo.

Nesse momento inicial da nossa distinção, entretanto, torna-se suficiente compreender a lei moral como um construto abstraído de um código moral e elevado à condição de princípio por um sistema de avaliações morais e filosóficas. Assim, se o propósito de Foucault consiste em compreender na experiência histórica dos gregos a emergência de um sistema moral, é certo que a noção de código venha a atender à necessidade presente dessa pequena intervenção que abre o campo do debate proposto.

Dito isso, encontramos agora o pretexto para a definição das práticas de si entendidas como um conjunto de regras derivadas do campo entreaberto pela problematização da moral. Assim, se a moral é um conjunto prescritivo de normas e comportamentos, as práticas de si devem ser situadas nas maneiras pelas quais os indivíduos devem se ater às regras para criar um campo de escolhas que tornem necessárias as suas ações.

Como bem diz Michel Foucault,

uma coisa é uma regra de conduta; outra, a conduta que se pode medir a essa regra… mas, outra coisa ainda é a maneira pela qual é necessário “conduzir-se” – isto é, a maneira pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o código. Dado um código de ação, e para um determinado tipo de ações (que se pode definir por seu grau de conformidade ou de divergência em relação a esse código), existem diferentes maneiras de “se conduzir” moralmente, diferentes maneiras, para o indivíduo que age, de operar não simplesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa ação (FOUCAULT, 1988, p. 27)

Essas diferentes maneiras são, na realidade, consequências de problematizações de si que resultam da relação do ser humano com o campo prescrito pela moral. Assim, cria-se todo um domínio da relação consigo que será efetivado e devidamente trabalhado por diversos tipos de práticas de si. Como em Foucault, o domínio de si – derivado de uma prática de si – exige uma explicação das regras que irão fundamentá-lo. Tais regras nomeamos aqui de facultativas, isto é, regras a um só tempo distintas das regras codificadas e das regras prescritivas que constituem o universo moral. Com aquelas, surgem possibilidades de hesitações, de escolhas que irão preceder a ação que o sujeito irá executar para alcançar as condições efetivas de praticar a si mesmo.

Ora, tendo delimitado o campo das práticas de si, convém agora procurar saber se é possível explicitar esse campo por intermédio de formas diferenciadas de problematizações morais. Podemos enumerá-las em problematizações que incluem a “determinação de uma substância ética”; a determinação de diferenças existentes entre “modos de sujeição” – que dizem respeito às maneiras pelas quais os indivíduos estabelecem relações com as regras facultativas –; a elaboração de um trabalho ético que se efetua sobre si mesmo; e, finalmente, à diferença que diz respeito ao que poderia se chamar de “teleologia do sujeito moral”.

No livro supracitado, a problematização de si começa na escolha de um bom uso dos prazeres que exige, daquele que a pratica, um certo exercício facultativo de hesitação, visto como a condição de uma avaliação pertinente da melhor maneira de se conduzir na esfera do desejo e dos seus prazeres. Ou seja, é preciso delimitar um campo específico dessa substância ética, para ter uma relação ativa com o corpo e os seus prazeres, que possa favorecer um exercício de contenção e uma deliberação devidamente assegurada pelo escrutínio do nosso entendimento. Aqui, o perigo a ser evitado é a intemperança, sendo essa a situação na qual irá cair aquele que se rende, sem nenhuma determinação, às solicitações dos prazeres que incitam seu desejo, tornando-o um ser humano sujeitado aos prazeres desenfreados que nascem no corpo.

É nessa delimitação primeira que todo um combate interno ao sujeito ganha o meio da sua efetivação. E é isso que define o modo de sujeição antes assinalado. Na verdade, esse combate interno à subjetividade deve ser compreendido como um exercício espiritual fundamentado por decisões cuja forma supõe a subjetivação de um conhecimento eleito; e que esse saber seja o efeito de uma escolha deliberada de uma virtude a ser alcançada.

Nos gregos, essa relação agonística vai ser pensada como uma Enkrateia – termo que remete à dimensão de um combate travado no lado interno da subjetividade – e a virtude que lhe dará forma será eleita como a temperança – no grego nomeada como Sophrosyne. Assim, da problematização agonística de si, uma outra forma de problematização é aqui introduzida: trata-se de uma problematização formal construída pela subjetivação de um saber, isto é, de um conhecimento que venha a ofertar a verdade a ser buscada por intermédio de uma virtude pretendida. É nesse nível formal que diferenças possíveis nas formas de “elaboração do trabalho ético” irão se configurar. A elaboração de um trabalho ético supõe a subjetivação de verdades que irão conferir às práticas de si as condições formais da sua efetuação. Assim, os exercícios espirituais que tratam das relações agonísticas empreendidas no intervalo entreaberto da subjetividade; ganharão os valores que irão definir a forma como ele deve ser efetuado. Em busca da temperança, que é a virtude suprema que define o combate, o exercício ganha forma e toda uma estilização da vida se torna possível.

Enfim, na última forma de problematização, o fundamental consiste em criar um campo teleológico de expectativas que dê consistência à subjetividade, constituindo assim um sujeito ético produzido por práticas de si devidamente entrelaçadas e estilizadas. Nesse campo de expectativas, o sujeito se define por sua capacidade de espera, por sua crença no mundo externo, por sua expectativa do lado de fora de si e pela convicção de que encontrou, no campo da experiencia prática, a meta que irá fundamentar o seu desejo de governar a si mesmo.

Com as quatros formas de problematização efetuadas, uma ética pode ser apresentada na dimensão da prática de si. Se o entrelaçamento dessa com o campo moral decorre do fato de não ser possível pensar a primeira sem colocá-la em relação com a outra, isso cria, para nós, uma última dificuldade: como definir no entrelaçamento inevitável entre essas duas noções as diferenças entre elas para extrair os traços que irão singularizar a prática de si no escopo aqui desejado de uma ética?

Construindo o traçado de quatro sutis diferenças que serão analisadas para findarmos a nossa argumentação inicial deste texto. Em primeiro lugar, são as diferenças existentes entre as regras do campo facultativo das práticas de si em oposição às regras normativas do campo moral; em seguida, as diferenças existentes entre as verdades que resultam da subjetivação do conhecimento de si e aquelas que vigoram no campo da experiência moral; em terceiro lugar, são as diferenças plausíveis entre a ética postulada como uma estética da existência e a moral que vigora no âmbito dos comportamentos normativos; e, enfim, as diferenças existentes entre a ética concebida como uma prática de liberdade e a moral descrita pelos mecanismos coercitivos que vigoram no campo social.

A primeira diferença está nas regras facultativas que delimitam a problematização da substância ética formuladas no campo preciso das decisões do sujeito, pela contemporização das regras prescritivas existentes no campo das decisões morais. Assim, é pela compreensão dessas últimas que as primeiras vão ganhar o seu devido destaque. Sendo preciso escolher para agir com poder de decisão, não seria possível tal determinação se não soubéssemos em que situação essa escolha se torna praticamente plausível. Se, por um lado, estamos sujeitos a uma escolha forçada imposta pelas regras prescritivas do código moral; talvez uma outra possibilidade de escolha possa ser vislumbrada na ocasião entreaberta pelas regras facultativas. Dessa maneira, as regras facultativas são aquelas que irão abrir para o sujeito um campo possível de escolhas entre modos de existência a serem problematizados.

Com esse campo entreaberto, todo um trabalho de elaboração de si ganha andamento e toda uma série de exercícios espirituais se torna possível. Nas práticas ascéticas desses exercícios espirituais, um combate de si para si ganha efetividade pela subjetivação de uma verdade que venha a autorizar o sujeito no campo formal das suas decisões; e, com isso, a segunda diferença pode, enfim, se estabelecer: há, na subjetivação da verdade uma condição efetiva desse seu poder na contramão da verdade de poder produzida pelo código moral. Assim, duas verdades entrarão em uma relação de tensão; havendo, por um lado, uma verdade prescrita pelo código e, por outro, uma verdade construída pela hesitação que autoriza o sujeito a escolher o momento oportuno de decisão. Ou seja, para decidir a melhor ocasião de agir no meio não só é preciso escolher, como também contar com uma verdade que formalize a escolha efetuada. Nessa elaboração de si por si, um poder da verdade deve limitar a verdade do poder subjacente ao código, dando ao sujeito a capacidade de cuidar de si por intermédio de decisões fundamentadas em verdades que tornem possíveis as práticas de liberdade.

Na terceira diferença, as práticas de si podem ser asseveradas como uma ética que conjuga liberdade e verdade com a estética da existência, se contrapondo à situação cabal de uma moral que exige do sujeito, tão somente, o indispensável para exercer na cidade uma boa conduta. Assim, o comportamento moral será relativizado por uma escolha estética de si que é a condição sensível da problematização da vida pela via da obra de arte. É possível pensar a ética como uma estética da existência? Segundo Foucault, essa foi uma das grandes descobertas dos gregos: ao conjugarem liberdade e verdade com beleza, eles propuseram a ética como uma arte de viver, e elevaram a estética para o campo existencial da vida prática.

Nessa etapa final da problematização moral dos prazeres, as práticas de si devem ser entendidas como práticas éticas que constroem no sujeito a determinação da faculdade de agir, tornando-o capaz de refletir criticamente sua situação no meio social. Advogamos, portanto, a ética do cuidado de si como a condição efetiva de laços duradouros, para justificarmos a urgência de um cuidado de si na era da pandemia. Resta entender se tais proposições podem ser transportadas para uma experiência clínica contemporânea, nos termos aqui propostos.

PSICANÁLISE E CUIDADO DE SI EM TEMPOS DE PANDEMIA

Retomando a questão que fomentou essa longa argumentação: pode o cuidado de si ser uma alternativa à crise acentuada pelo isolamento necessário? Defendemos que cuidar de si talvez seja a única possibilidade ética diante de um quadro pandêmico que acentuou a crise latente que já se estendia por todo o campo social. Talvez seja a maneira mais interessante de se ocupar para evitar que a crise nos assole e se prolongue na nossa subjetividade acentuando o mal-estar do nosso estilo de vida.

No nosso percurso psicanalítico, viemos ensaiando a possibilidade de implementar um cuidado de si no intercurso de um tratamento clínico. No método desenvolvido pela psicanálise, já se encontrava latente todo um processo de elaboração implementado por um cuidado de si presente no intercurso de uma análise. De Freud aos contemporâneos, pudemos verificar que tais cuidados já ensaiados colocavam a experiência analítica na perspectiva de uma ética que tratava do sujeito do inconsciente como um sujeito do desejo.

Sendo assim, nada impede que possamos pensar a elaboração metodológica – descrita brilhantemente por Freud – na perspectiva de um cuidado real e efetivo de si. Ocorre que na urgência da pandemia todo o problema do cuidado assume proporções até então secundárias no escopo da clínica psicanalítica. A ameaça real do vírus, acrescida das possíveis imaginações que o risco real de contágio pode favorecer, faz com que a psicanálise se reinvente em uma prática de si a distância para implementar uma ética do cuidado que aqui analisamos nos termos propostos por Foucault.

Quais são os pressupostos necessários para tal transposição? Primeiro, que o cuidado de si seja implementado como ponto facultativo na metodologia estabelecida pela regra da associação livre (FREUD, 1923); que a atenção flutuante (FREUD, 1923) incida sobre o desejo inconsciente, fazendo advir a verdade do desejo a ser integrada pelo analisando; que a elaboração dessa verdade produza uma modificação do sujeito que se cuida, dando a ele condição de se haver com o seu desejo de uma outra maneira; e que o processo de elaboração consista, finalmente, na construção de um sujeito ético e ativo.

O cuidado de si, na esfera do tratamento analítico, deve ser cotejado com a descoberta das formações do inconsciente colocadas em análise. Nesse nível, cuidar de si implica modular-se de acordo com as verdades que advêm no campo da associação livre (FREUD, 1923) e deve significar imediatamente uma mudança subjetiva do sujeito que se observa e se analisa ao atribuir a si um novo sentido para sua conduta. Nessa perspectiva, o cuidado de si se encontra presente ao longo do tratamento, promovido pela escuta auspiciosa do analista que intervém no manejo da transferência. A condição, contudo, é de que o analista também demonstre habilidade nessa escuta, tendo igualmente demonstrado que ele pode cuidar de si (FERENCZI, 1928).

Em segundo lugar, a atenção flutuante (FREUD, 1923) deve favorecer o acolhimento de uma verdade do desejo inconsciente; e a disposição de cuidado deve oferecer uma ambientação para que os problemas advindos das formações do inconsciente possam ser trabalhados ao longo do tratamento. Nesse contexto, a clínica se inclina para a elucidação de um desejo por intermédio do acolhimento dos problemas e das questões que advêm ao longo do tratamento analítico. A intenção aqui consiste em modular um diapasão de confiança indispensável para que a elucidação dos casos do paciente possa ser devidamente elaborada e transformada pela expressão verbal ocorrida no interior da análise.

Em terceiro lugar, pretende-se que a elaboração dessa verdade que advém ao longo do tratamento promova uma mudança subjetiva na posição do sujeito que se elabora. A estratégia consiste em fazer com que o sujeito saia de uma posição passiva para se impor como um sujeito ético que demonstra ser capaz de agir de acordo com o seu desejo. A clínica deve ser criteriosamente pensada como o lugar do acolhimento das questões e dos problemas suscitados pelas formações do inconsciente (FERENCZI, 1929).

Com a consecução desses breves cuidados, nada impede que a técnica do cuidado de si seja devidamente implementada no intercurso de um tratamento analítico. A condição para que tal procedimento ganhe uma consistência clínica é que a verdade advinda do encontro seja acolhida sem a interpretação criteriosa do analista. Sendo assim, nessa modalidade clínica, o que se encontra em questão é o advento de uma verdade que só pode fazer valer os seus efeitos pelo acolhimento silencioso de um analista que intervém no sentido de pontuar o acontecimento que acaba de ocorrer (FERENCZI, 1930).

No decorrer da sessão, a clínica passa a ter componentes éticos indubitáveis, e a indecisão, a incerteza, a ausência de um saber específico para a indeterminação daquilo que adveio como material posto na sessão são a contrapartida de toda uma elaboração em palavras que prescrevam a direção de um tratamento plausível pela descoberta freudiana. Alguns dirão que buscamos nessa inflexão condições de possibilidade para a implementação de uma outra clínica; entretanto, nossa preocupação consiste fundamentalmente em lograr uma nova orientação em análise, em que o sujeito não seja remetido à sua solidão inconsciente.

Ou seja, nessa modalidade clínica, a inflexão tende para uma problematização de si que resultará em um cuidado de si indispensável para o advento de um novo sujeito. A convergência com as proposições foucaultianas é visível, por exemplo, na priorização das técnicas e das problematizações de si que são devidamente trabalhadas pelo vetor da transformação do sujeito ao longo da análise.

Claro está que não pretendemos fazer deste trabalho um compêndio exaustivo de uma nova modalidade clínica. Pelo contrário, para nós é indispensável que certos elementos sejam problematizados para que a construção seja condizente com os dilemas apresentados pelo analisando. O que pretendemos nesta ocasião é introduzir no manejo da transferência a possibilidade efetiva de um cuidado de si que nos autorize a pensar uma ética de inspiração foucaultiana no escopo entreaberto pelo espaço analítico.

Defendemos, como prática afetiva de travessia da atual crise, um cuidado de si nos termos propostos por Michel Foucault, combinado com uma nova modalidade do tratamento clínico. O cuidado de si como forma ativa de resistência à pandemia, segundo os termos apresentados na nossa introdução. Que ele seja, igualmente, o empreendimento efetivo de ocupação de si durante o período de isolamento social foi, na realidade, o que motivou esta longa explicação.

Todo esse processo de elaboração transmutado em cuidado de si deve favorecer – pelo advento da verdade do desejo – a emergência e constituição de um sujeito ético construído esteticamente ao longo de um tratamento analítico.

É possível afirmar que a saída da crise foi devidamente alcançada por um longo e lento trabalho de si devidamente implementado neste longo período de pandemia. Que o cuidado de si seja a alternativa cabal ante as exigências confusas do atual governo, isso só irá justificar a nossa hipótese. Afinal, cuidar de si só é possível se houver resistência ao presente e aos poderes que habitam o presente e que impedem, com palavras de ordem, que a liberdade de escolha possa, enfim, se consolidar.

REFERÊNCIAS

FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica. 1928. In: FERENCZI, S. Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992a. v. IV.

FERENCZI, S. Princípio de relaxamento e neo catarse. 1930. In: FERENCZI, S. Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FOUCAULT, M. História da sexualidade, v. II – o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade, v. III – o cuidado de si. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

FREUD, S. O inconsciente. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1915. v. 14.

FREUD, S. Dois verbetes de enciclopédia. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1923. v. 18.

AUTERIVES MACIEL JUNIOR

Doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ), mestre em Filosofia (UERJ) e membro associado da SPID.

E-mail: autermaciel@gmail.com