O ATRAVESSAMENTO PELA PALAVRA

Victor Di Francia Alves de Melo

“Para cantar é preciso perder o interesse de informar.”

Manoel de Barros, Menino do mato

Nos últimos meses, uma série de palavras não usuais acometeu a cotidianidade brasileira: coronavírus, pandemia e quarentena. Tais palavras ganharam tamanha força e, com razão, viralizaram em nossas rodas de conversa – seja com familiares, com colegas de trabalho e até em nossos atendimentos como psicólogos e psicanalistas, o assunto incessante é o impacto do novo coronavírus em nossas vidas.

Há motivos de sobra para nos mobilizarmos e, com cautela, criarmos medidas de combate à doença. Os meios de comunicação nos colocam diariamente vários apontamentos quando relacionam o mal-estar orgânico com o mal-estar econômico. Ainda é possível fazer relações da pandemia com o mal-estar social e cultural – são muitas as correlações possíveis. Creio ser, inclusive, um bom momento para a releitura do texto “O Mal-estar na Civilização” de Sigmund Freud por psicanalistas e por outros interessados pelo tema.

Entretanto, gostaria de convidá-los a abordar o assunto seguindo outro norte. Sigamos o texto acenando à palavra. Não costumamos acenar à palavra em nosso dia a dia. Mas o que é acenar à palavra? Usamos as palavras, argumentamos com as palavras como se elas fossem um instrumento de comunicação que expressa nossos sentimentos, ideias e opiniões. Contudo, se considerarmos apenas a via da instrumentalização das palavras como aceno à palavra, acabamos por forçá-las. Certamente, a palavra nos serve como instrumento. Porém, tal constatação pouco acena à palavra.

Concordar que acenar às palavras corresponde primordialmente a nos servirmos de sua instrumentalidade cotidiana nos conduzirá inevitavelmente a seguinte pergunta: o que é um instrumento? Essa pergunta parece tola, mas é muito embaraçosa. Martelos são instrumentos, carretéis são instrumentos, violões são instrumentos. Como a palavra pode ser também um instrumento?

Os instrumentos se oferecem a nós como apetrechos utilizáveis em nossa lida cotidiana com as coisas. Se a palavra é instrumento, ela é um apetrecho utilizável? De que forma? E ainda: se carretel, violão, martelo, palavra e voz são instrumentos, o que os une e define seu caráter de instrumento? Afinal, o que é e qual é a instrumentalidade do instrumento? Estamos em completo embaraço.

Nomeia-se aporia a palavra grega que canta o embaraço e a perplexidade. Aporia é o movimentar-se junto ao cerne do conceito. O cerne do conceito se enraíza no pensar atravessado pelas perguntas fundamentais. Até quando nos esquivaremos das perguntas fundamentais? Há tempos, as perguntas fundamentais são tratadas
com irrelevância. O tratamento oferecido a elas beira a apatia.

Perguntas fundamentais são fundação, ou seja, são ações de fundar, re-fundar e a-fundar o fundamento. O assunto é ex-tenso. De todo modo, a constatação “a palavra é um instrumento que serve para comunicar” a partir do acenar à palavra não nos levou muito longe. Talvez tal constatação tenha trazido algo para bem perto.

A frase “a palavra é um instrumento que serve para comunicar” não dá o direito de concluir que somos donos das palavras. As palavras nos servem, mas nós não possuímos as palavras. O servir da palavra não a torna serva dos humanos. Se nos apoiarmos em textos como “O Chiste e sua Relação com o Inconsciente” de Freud ou “Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise” de Jacques Lacan, poderemos concluir justamente o contrário: nós servimos aos desígnios das palavras.

As palavras viralizam com tamanha força e poder que somos submetidos aos seus caprichos. Re-configuramos nossas maneiras de viver e trabalhar quando as palavras irrompem de maneira brutal. Um exemplo dessa irrupção é o acometimento que sofremos com a palavra coronavírus. Ela se espraiou com a força e a velocidade do vírus nomeado.

As palavras parecem nos possuir, pois, de certa forma, elas nos dominam. Possuir e dominar são palavras fortes. As palavras nos servem e, ao mesmo tempo, nos possuem. Será essa uma boa descrição de nossa relação com as palavras?

Ao primeiro olhar, o caráter servil e dominador das palavras aparece como vilania. Contudo, a vilania dominante da palavra ser-vil ressoa dissonante se pretendemos bem descrever e escutar nossa relação com as palavras. Dominante e dominado, servo e escravo são exemplos de termos pertencentes às dialéticas do império das vontades e do desejo. Seguir esse caminho é também forçar a palavra.

A tentativa de distinguir o expressar das palavras através do que queremos dizer com a palavra também participa do forçar. Esforçados, forçamos a palavra com esforço em distinguir o uso da palavra “palavra” do uso da expressão “as palavras” no presente texto. “Será que o autor defende que a palavra antecede as palavras? Será o contrário? Serão sinônimos?”

Esforçar-se em distinguir transforma cotidianamente o expressar da expressão em pressa e pressão: o ex-pressar se atualiza como pressa e a ex-pressão devém pressão atualizada. Na atualização, ambas as palavras são presentificadas. Tais procedimentos forçam ainda mais a palavra.

As palavras ressoam se oferecendo como atravessamento palavreante. Ao oferecer-se, acolhemos as palavras através de acenos. Acenar à palavra é estar junto à palavra, é tratar das palavras, fazer um trato com elas – contrato palavreiro. Somos atravessados pela palavra de tal modo que nossas configurações de mundo se dão próximas às palavras.

A humanidade se constitui atravessada pela palavra. Acenar à palavra é reconhecer e acolher o atravessamento palavreante que constitui nossa saga linguageira. Originariamente, junto à palavra, o atravessamento palavreante não se dá a partir de significações. A estruturação de nexos gramaticais e de proposições enunciativas, elucidativas ou obscuras é posterior ao advento da palavra.

A palavra não é um instrumento do dizer, ela é o atravessamento do dizer. Prova disso são as infinitas nuances que utilizamos ao proferi-la. Modulamos as palavras sutilmente e, inspirados pelos perfumes do dizer do silêncio, performamos melodias. As melodias se oferecem à escuta até na fala mais cotidiana, sem presunções musicais. Performando melodias, palavreamos o constituir singular de nossas existências e de nossos mundos.

As palavras são entoadas melodicamente com suspiros e frêmitos de nossa respiração. Entoar é entornar a palavra em toada. Toada é o cantar plural da música. Cantar é entoar. A saga linguageira e seu atravessamento palavreante são entonação com entoação em toada que se imiscui aos dizeres do silêncio. Atravessar junto à palavra, à saga linguageira, é cantar o dizer do silêncio sussurrado ao pé da escuta.

Palavra e escuta se entrelaçam matrimonialmente e desabrocham as testemunhas de seus laços: nós, humanos e cantores singulares. Em nosso cotidiano, damos pouca atenção ao advento musical pela palavra. Na maior parte das vezes, estamos preocupados em comunicar e argumentar nossos dizeres tomando como secundária a pujança do atravessamento palavreante que nos constitui. A saga linguageira então decai em embates técnicos sobre quem tem mais razão.

Manoel de Barros, em Menino do mato, nos alertou sobre os perigos da informação, parente da razão. Informar é enformar, pôr na forma, as palavras forçando-as a se submeter às nossas vontades. Frequentemente, a psicanálise se rende aos embates erísticos, inclusive àqueles travados entre analistas e analisandos. Assim procedendo, esquecemos no canto o canto e o encanto do palavrear.

Contudo, devemos ressaltar: o decair que nos torna afastados da saga linguageira também pertence à palavra. Decadentes são aqueles que são cadentes, ou seja, em cadência. Dessa forma, em cadência, somos também impulsionados a ascender à saga, como na montanha russa, criando movimentos linguageiros e vocálicos. Fundamos, re-fundamos e a-fundamos o fundamento. Tal movimento é o próprio caminhar travesso da melodia pertencente ao atravessamento palavreante.

Reconhecido o decair inerente à saga linguageira e acenando à palavra, o cantar perde o interesse em informar e conduz ao “em-formar” como constante a-formar plástico e constitutivo do canto atravessado e palavreante.

Cantando, as palavras ascendem e descendem bailando as consonâncias e dissonâncias da toada. Assim, a palavra é atravessada, é tinhosa, nos convocando a escutá-la enquanto nos deixa sem fôlego – é palavra atravessada e travessa que se atreve a ser atrevida, maliciosa.

Malícia é a palavra cantada através do olhar da menina mulher da pele preta. A mesma menina mulher que não deixa o poeta dormir sossegado pensando nela todo dia, toda hora (BEN, 1974). Nos versos cantados, musa e poeta compactuam musicalmente a malícia do olhar atravessado pela palavra. O canto malicioso se entorna como um sorriso alvo, de olhos brancos e corpo de pele preta.

Para cantar o atravessamento palavreante da saga linguageira, constitui-se voz. Cantar junto à voz é constituir-se musicalmente através da palavra atrevida e atravessada. Cantar é palavrear musicalmente a existência desinformando, ou seja, liberando o dizer de suas formas habituais e formando outros contornos; contornos pautados na escuta musical.

Isso não quer dizer saciar nossas vontades e nossos caprichos, nem permanecermos insaciados. Ao avesso, trata-se de desapegar-se do uso costumeiro e mesquinho da palavra e liberá-la para seu caráter marginal. À margem, no canto, o canto funda, re-fundar e a-funda o encanto do encantar. Em cantar, a palavra entorna tornando-se desinformada e ressoa como “em-formar” a-formar.

Desinformado, marginal e atrevido, o canto da saga linguageira é insignificante. Tornando-se insignificante, o canto se entorna tornado. Desse modo, a significação se retrai sem necessidade de significar e a voz respira aliviada com a suspensão das significações. Suspensa, a significação a-significa dessignificando como a-se-significar insignificante. Só então poder-se-á escutar melodicamente o dizer do silêncio sussurrado ao pé da escuta.

Árduo é o nosso atravessamento atrevido e palavreante. Ele nos convida a acenar à palavra escutando-a. Atrevidos, junto à saga linguageira, fundamos conhecimento, história e cultura. Contudo, pouco nos esforçamos para liberar musicalmente a palavra e a escuta como fundamentos de ressonância. A escuta musical das palavras nos permite retirá-las dos grilhões visuais que herdamos de nossos antepassados.

Tais grilhões se personificam em palavras como representação, intenção e significação. Mesmo quando enaltecemos a oralidade, ficamos presos, na maior parte das vezes, ao âmbito semântico do querer ou não querer dizer. Todos os dias, ouvimos com a intenção de compreender e apreender as significações da oralidade. A oralidade cotidiana subjuga as palavras no âmbito das significações mesmo quando aponta para o não significar. Apenas ouvindo, ainda não escutamos. O escutar é mais originário do que o ouvir.

Acenar à palavra não é rechaçar o significar como tentativa de não ser decadente. É escutar o canto do silêncio insignificante e atrevido que nos constitui como cadentes, a-significantes, insignificantes, a-nos-significar. Assim, vigoramos o atravessamento palavreante da saga linguageira.

Vigorar é trazer a palavra à vigência em toda a sua amplitude, inclusive como musicalidade palavreante. Vigorar é curar a palavra, tratá-la no trato com ela – contrato palavreiro. Originariamente, vigorar não é curar a palavra como um afastamento dos possíveis males que possam acometê-la. Vigorar a palavra é curá-la como oferecimento de atenção e pré-ocupação à vigência palavreante; é cuidar das palavras acenando ao convite que elas nos fazem.

O convite da palavra é convocação. Ele nos convoca à compreensão existencial através das palavras, em travessia. Toda convocação é uma ação vocálica, uma ação de compreender a si mesmo junto à voz. Junto à voz, cantamos o vigorar-se do atravessamento palavreante com seu caráter atrevido, malicioso e insignificante asignificar. O vigorar-se então ressoa a vitalidade resplandecente e ínfima dos dizeres do silêncio como fundamento para a cadência da saga linguageira.

Desde seus primórdios, a psicanálise esteve próxima à talking cure: a cura pela palavra relatada por Anna O. a Josef Breuer e a Freud. Na busca por identidade, o começo da trajetória psicanalítica se constituiu como debate sobre os benefícios e os limites das ab-reações, das hipnoses e de outros métodos. Não há necessidade de nos atermos, no presente texto, às características e metodologias pertencentes a cada técnica. Cabe-nos apenas ressaltar que a psicanálise ainda hoje se nutre das contribuições provenientes dos apontamentos de Anna O. acerca da talking cure.

Em comum aos tratamentos dados às histerias por parte da medicina e pela psicanálise desde o fim do século XIX, está a catarse. O método catártico não é a catarse. O método catártico pertence ao querer forçar a palavra e subjugá-la como instrumento para atingir determinados fins. A kátharsis, palavra grega que origina o vocábulo “catarse,” é anterior à época dos dispositivos criados pelas vontades humanas.

A catarse adquiriu grande lastro a partir dos escritos de Platão e de Aristóteles. Ela diz respeito à purificação, à ação de purificar. Purificar é mais do que dar vigor. Purificar é oferecer vigor. Não podemos dar vigor à palavra. A palavra já possui vigor em potência.  Oferecer vigor é ofertar-se como abertura atravessada pelas configurações palavreantes de mundo. Oferecer é ofertar-se como o aberto da constituição atravessada pela palavra. Oferecemos vigor e vigência à palavra quando acenamos às palavras.

Oferecer vigor à palavra é desapegar-se do uso costumeiro e mesquinho das palavras e liberá-las para seu caráter marginal e atrevido. Liberada, a palavra respira e se oferece ao canto livre. Ao cantarmos livremente, o atravessamento marginal e atrevido das palavras é presunçosamente insignificante a-significar. Nesse caso, a letra permanece junto ao cantar das palavras sem se sobrepor à entonação constitutiva do dizer.

Contudo, o proferir das palavras pela voz não as tornam submissas. A voz se entrega ao palavrear das palavras na medida em que dá testemunho da saga linguageira. Entregando-se às palavras, a voz se constitui como ressonância co-originária à palavra e à escuta.

Quando a palavra recrudesce, ela se retém como significação e deixa de lado sua constituição insignificante em-significar a-significar. Então a palavra decai em significante. Quando as palavras não são mais cantadas e se dispõem apenas a serem argumentadas, temos aquilo que a psicanálise chama de trauma.

Em nossa abordagem, na clínica da ressonância musical, trauma é o estado ôntico, rançoso e apático das palavras. As palavras traumatizadas são aquelas cujo vigor se oblitera – elas querem dizer, pois se debatem contra o silêncio em vez de dizer como uma melodia que se imiscui ao silenciar.

Freud encontrou um caminho para oferecer vigor às palavras. Percorreu esse caminho ao se deparar com o caráter marginal e atrevido da palavra. Chamou de sexualidade a malícia marginal das palavras e, até hoje, nos sentimos embaraçados com o grande atrevimento freudiano. Porém, ressaltemos que, originariamente, o atrevimento não é freudiano – não é Freud o marginal, são as palavras que são marginais.

Ainda hoje a sexualidade é vista como marginal, como à margem dos bons costumes. Contudo, a marginalidade não é o conteúdo ou o significado do vocábulo sexual. A marginalidade é o próprio ressoar insignificante a-significar da palavra que se oferece à escuta. O atrevimento da sexualidade é antes de tudo palavreante, ou seja, copertencente à palavra travessa que se atreve a ser atrevida, maliciosa e insignificante.

Ao oferecer vigor às palavras, as palavras se oferecem à escuta e ao cantar das vozes. Cantar é escutar musicalmente a palavra em ressonância e proferi-la. Em sua origem, cantar não é uma ação específica daqueles que dominam as técnicas acadêmicas do canto orfeônico. Cantar é entoar melodicamente os dizeres junto à voz. Não cantamos com a voz, pois não temos a opção de cantarmos sem a voz. À voz também pertence o caráter instrumental, mas não se restringe a ele. A voz é o próprio habitar musical que, acenando à palavra, nos constitui existencialmente atravessados pela saga linguageira.

Àqueles que escutam, o querer cantar já é canto. Também é canto o encanto do dizer cotidiano que, de tão banal, costumamos não atender. Quantas vezes colocamos o canto no canto e ainda desprezamos o escutar dos dizeres do silêncio?

No setting psicanalítico, o caminho da cura através da palavra passa por oferecer vigor às palavras cantadas seja por analisando, seja por analista, seja até pela palavra. Acenemos ao vigor palavreando-o, pois o vigor palavreante já está lá à espera de ser acenado. O acenar às palavras cabe a analista e analisando como livre jogo de escuta. Acredito que acenar às palavras em seu arrojo musical concedendo-lhes vigor seja um belo caminho de análise. Tal caminho conduz à compreensão vocálica, existencial e, sobretudo, musical através da saga linguageira.

Em situações específicas, damos a palavra em sinal de confiança; como um juramento de solenidade. Em outros casos, concedemos a palavra ao apresentar alguém que proferirá um discurso. Concedamos, então, em sinal de confiança, solenidade às palavras. Conceder é ceder com vocação à palavra aquilo que já lhe constitui originariamente. Conceder é reconhecer a solenidade do acontecimento palavreante e acenarmos como aqueles que o escutam. Escutar já é acenar à palavra oferecendo-lhe vigor musical. Escutando, existimos junto ao atravessamento palavreante da saga linguageira.

Convoquemos nossos analisandos a falar, a cantar, a habitar e a existir próximos à ressonância palavreante; escutando-a. Convocar é convidar à escuta com ação vocálica: convocação. Convidar à escuta é oferecer-se melodicamente às constituições existenciais vocálicas dos analisandos. Seja por parte do analista ou do analisando, aceitar o convite da convocação é se abrir para o escutar e para o palavrear que se dispõem à escuta como musicalidade.

Pode-se convidar também o setting a falar, a escutar e a existir como ressonância musical palavreante. Esse convite costuma trazer bons frutos à análise. A ressonância palavreante como abertura e disposição junto à escuta do que se dispõe a ser escutado vige como harmonia musical.

À harmonia musical pertencem dissonâncias e consonâncias como movimentos constitutivos. Portanto, a harmonia musical não se restringe às pretensões usuais de encerrar conflitos. A harmonia movimenta o fundar, refundar e a-fundar das melodias pertencentes ao atravessamento palavreante e se dispõe a diversas tonalidades afetivas. Tais assuntos serão abordados em textos futuros.

Hoje, a palavra perde a vigência de seu vigor num mal-estar palavreante. Em época de pandemia, vivemos um momento de crise. Vivemos, hoje, uma época de crise. Essa época se inicia muito antes da pandemia do coronavírus. A palavra coronavírus dá testemunho do mal-estar palavreante já constituído e a se constituir.

Vivemos uma época de crise. Crise é mais uma palavra de origem grega –krísis. Em sua origem, uma crise não precisa ser algo negativo. Hannah Arendt nos diz que cada crise nos convoca a voltar às questões mesmas exigindo respostas novas ou velhas a partir de julgamentos diretos. Desse modo, a crise convoca a nos colocarmos nus diante das questões.

Por outro lado, a palavra “época,” do grego epoché, atravessada por sua herança fenomenológica, nos convoca a suspender nossas certezas e julgamentos cotidianos.

Portanto, uma época de crise presentificada no mal-estar palavreante nos convida à suspensão não como abandono, mas como convocação de nos aproximarmos e habitarmos existencialmente junto à palavra.

Despindo-nos de nossas certezas e pré-conceitos acerca das palavras, restituímos o vigor do atravessamento palavreante com vocação musical. Convidamos a psicanálise a se aproximar desse vigor desabrochando-o com cuidado. Não para mantê-lo forçosamente aberto. Apenas para acenar, a cada vez, como convite linguageiro àqueles que queiram se dispor musicalmente próximos aos caprichos da palavra.

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VICTOR DI FRANCIA ALVES DE MELO

Psicanalista, membro associado da SPID.

E-mail: victordifrancia@gmail.com