PANDEMIA, TRAUMA E TRANSFORMAÇÕES

Janaina Pires Garcia [1]

A pandemia de Sars-Cov-2 trouxe consigo algo de inesperado para toda a população global, arrebatando a todos numa onda de isolamento social e quarentena, as quais deixarão cicatrizes profundas a nível mundial. As consequências psicológicas que esse evento vai deixar serão de longo prazo, e a formação de trauma coletivo é inevitável.

Essa epidemia global poderia ser comparada a um choque (FERENCZI, 1992), onde existe uma aniquilação do sentimento de si, uma incapacidade de agir ou pensar à defesa de salvaguarda própria, no qual o sujeito, que se acreditava seguro, é pego despreparado frente ao imprevisto. Esse “eu” começa então um processo de desmoronamento, pois vai se tornando cada vez mais disforme, vai perdendo o seu contorno e suas funções. Tem- se então um estado de paralisia, onde o ser não sabe o que fazer em tal situação.

A consequência mais imediata a este não saber o que fazer é a sensação de angústia, que consiste numa inadaptação a esta nova maneira de viver, que pode levar à vários mecanismos de defesa, como a fuga, a representação para suportar o desprazer (compensando em comportamentos compulsivos: bebidas, alimentação, sexo, etc.) ou a negação de que algo realmente importante está acontecendo (mecanismos psicóticos, nos quais o sujeito cria uma outra realidade como forma de suportar tal sofrimento).

Freud (2018) usa o termo neurose traumática para esclarecer que a sua causa repousa sobre o fator da surpresa, do susto. Esse susto, que é o estado que alguém fica quando entrou em perigo sem estar preparado, seria exatamente o sentimento diante da pandemia do coronavírus.

Como bem pontuou Freud (2018), os sentimentos de ansiedade (estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele) e de medo (objeto definido ao qual se tenha temor) serão somente desencadeados após esse susto inicial. Logo, não é a ansiedade e o medo que produzem o trauma, mas sim esse despreparo diante do impremeditado. O que se vive hoje, remete ao que Freud e Ferenczi estavam descrevendo, um sobressalto causado por esse vírus e seus desencadeamentos: a ansiedade e o medo. Tal evento coloca a comunidade mundial em cheque, causa um trauma profundo, no qual é colocado a emergência da vida em face da eminência de morte. Pensar que o ser humano é finito, mortal, é algo assustador. Isso só é lembrado em momentos como esses, onde o isolamento social é utilizado como estratégia para preservar o maior e mais supremo bem de todos: a vida.

A longo prazo, serão sentidas as cicatrizes desse trauma, porque ele vai potencializar os sintomas que cada um já carregava consigo: frustrações, fobias, compulsões. Medo de sair de casa – a pessoa vai pensar várias vezes antes de sair se realmente é necessário ou não, porque o ideal é evitar aglomerações; medo de cumprimentar com dois beijinhos ou aperto de mão – porque é sabido pela comunidade médico-científica que tais práticas contribuem para a disseminação de diferentes tipos de vírus; lavar sempre as mãos – as pessoas que possuíam esse hábito naturalmente, se tiverem alguma predisposição, podem no futuro não muito distante desenvolver um transtorno compulsivo obsessivo (TOC), de lavarem a mão o tempo todo, de maneira inconsciente, sem saber por que estão desempenhando tal comportamento, como no filme Melhor é impossível, onde o personagem principal, interpretado pelo ator Jack Nicholson, sofre desse transtorno. Os exemplos de sintomas de estresse pós-traumáticos são inúmeros, mas o que se pode fazer de positivo com eles?

O traumatizado precisa criar estratégias de sobrevivência para não sucumbir, caso contrário, toda a sua existência estará comprometida.

Segundo Bion (2001) aprender com a experiência implica a experiência de aprender com a existência do inconsciente que é a experiência emocional. Para tal, se faz necessário enfrentar a dor psíquica ao invés de fugir dela, para dessa forma promover uma transformação da realidade.

Se tomarmos a situação da pandemia analogamente com os pressupostos bionianos, esse seria um momento de utilizar em toda a sua potência o conceito de pensar (1984), porque o pensar é indissociável da experiência emocional e o ato de pensar é que irá possibilitar as transformações da nossa realidade.

Pensar na clínica bioniana seria o ato analítico de incitar no analisando a curiosidade, a reflexão e por último a transformação. Porém, para engendrar esse processo é necessário promover um alargamento do sentimento de frustração, da passagem de um estado mental a outro, no qual o paciente será capaz de suportar o sofrimento e ressignificá-lo.

O pensar é que vai dar outra significação à essa experiência, que vai dar sentido a algo que está sempre em transformação. Por sua vez, o próprio pensar é um ato transitório, que está sempre se reformulando.

Nesse sentido, através do ato de pensar, estaríamos procurando uma ressignificação dessa experiência de isolamento social, medo e angústia que assola a humanidade atualmente. Estaríamos também buscando uma estratégia de sobrevivência, diante do trauma que está por vir.

A situação atual nos coloca diante da morte de uma determinada personalidade social e o nascimento de outra, como acontece no indivíduo traumatizado: uma clivagem entre o antigo eu e o novo eu. Uma parte precisou morrer para outra poder viver. O traumatizado é como se fosse um sobrevivente de guerra que precisa reconfigurar suas experiências para continuar a vida adiante ou então ficar paralisado na dor e perecer.

No trauma existe uma parte do ser que está morta. A grande questão que fica é como fazer a parte viva caminhar até à parte morta? Como viver no pós-pandemia?

Utilizo-me das sábias palavras de Bion para conseguirmos promover as transformações necessárias dentro de cada um de nós e aprender com tudo isto que estamos enfrentando: se entregue à experiência sem memória, sem desejo e sem ânsia de compreensão.

REFERÊNCIAS

BION, W. Aux sources de l’experiénce. Paris: Presse Universitaires de France, 2001.

BION, W. Second thoughts. London: Karnac Books, 1984.

BION, W. Transformações. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

FERENCZI, S. Reflexões sobre o trauma. In: FERENCZI, S. Obras completas. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FREUD, S. Para além do princípio do prazer. Porto Alegre: L&PM, 2018.

JANAÍNA PIRES GARCIA

Mestre e doutora em Educação (UFRJ), professora de Sociologia, membro associado da SPID.

E-mail: janainapgarcia@gmail.com


[1] Trabalho inédito.