AC/DC (ANTES E DEPOIS DO CORONAVÍRUS)

Nadia Couri

Nunca uma incerteza foi tão certa. Em tempos de COVID-19, só há dúvidas, perdemos todas as certezas, prazos, datas. Nosso cotidiano foi assolado por uma guerra virótica, tal qual Bill Gates previu em 2015 sobre a Terceira Guerra Mundial (GATES, 2015). O vírus tornou concreta a ideia de que nada controlamos, trouxe a morte para perto de nós, nas estatísticas assombrosas e nas covas estampadas na TV lembrando um campo de concentração. Cada máscara é a lembrança da ameaça que o outro pode representar. Um metro e meio de distância nos supermercados, aglomeração nos transportes públicos e bares do Leblon.

O corona é a esfinge do século XXI dizendo: enquanto não me decifras, eu vou te devorando.

A pandemia despertou o melhor e o pior das pessoas. Nunca se falou tanto em solidariedade, “estar perto longe”. Em contrapartida aumentou a violência doméstica, a intolerância com o excesso de presença imposta nas casas e a solidão do isolamento, a essa altura não sei se é mais complicado o confinamento solitário ou o comunitário, familiar, sem direito a um pouco de privacidade nem de poder ficar um pouco só.

Fala-se em novo normal. Não há mais normal. Havia o familiar, o conhecido que se tornou mais estranho e imprevisível que nunca. Casamentos postos a prova. Crianças em casa o tempo todo mostrando aos pais o quão pouco sabiam delas. Bagunçou a vida e a rotina, aos poucos, foi se estabelecendo uma nova rotina.

Trazendo isso para nossa prática clínica, nunca estivemos em tamanha igualdade de situação com nossos clientes. Ambos confinados se comunicando através de um novo interlocutor. O on-line se tornou o terceiro ou mais um terceiro no encontro entre o analista e seu cliente.

Estamos ameaçados por um inimigo invisível e, por isso mesmo, onipresente desconhecido, que surgiu em plena febre de autoexposição em que desde beijos apaixonados até pratos de macarrão, tudo se convertia em fotos, stories, Instagram etc.

O COVID acabou com a onda “show off ”, com a quantificação dos likes recebidos. Todos para casa, tendo obrigatoriamente que voltar o olhar para si mesmos. Todos unidos contra um inimigo comum. E agora, José? E agora, psicanálise???? Vamos atender on-line. Pronto.

Pronto, nada. Agora enfrentamos um novo desafio a ser destrinchado por cada profissional com cada um de seus clientes de forma única, todos tateando, analistas e analisandos.

Atendimento por internet não é novidade. Na minha clínica já atendi um americano que passava três meses no Rio e depois voltou para sua cidade natal (NY). Por sugestão dele, continuamos o atendimento por Skype. Essa foi minha primeira experiência nesse tipo de atendimento.

Com o tempo, essa prática tornou-se mais frequente. Clientes foram morar ou estudar em outros países e optaram por continuar seu atendimento on-line. Técnica dominada.

Dominada, nada. Isso era antes do COVID. E agora? O que mudou na minha clínica?

Os clientes precisavam continuar a ter suas sessões. Analistas precisavam continuar atendendo. Afinal, é o nosso ofício e também a nossa sobrevivência.

Antes o atendimento on-line era uma opção, agora é compulsório, ou melhor, a única opção.

Alguns clientes aceitaram sem maiores problemas, outros optaram por interromper “provisoriamente”.

De qualquer forma, tratava-se de analisandos com uma vivência presencial de análise de, no mínimo, alguns meses. Eis que, de repente, surge uma cliente nova. Completamente desconhecida. E agora?

Comecei a fazer os contatos por WhatsApp, para combinar horário, decidir qual ferramenta usaríamos. Percebi que a transferência já começou a se dar nesses primeiros contatos. Assim, na primeira sessão já houve uma empatia mútua.

Curioso, também, foi o fato de me ver na tela. No consultório, eu não me vejo. No computador ou celular, tenho que lidar não só com a imagem do paciente, mas com a minha também. O setting mudou, os contratos caíram por terra. Afinal, não eram tão fundamentais para uma análise.

Freud insistia no divã porque não suportava ser encarado várias horas por dia. Freud declarou que o divã era a sua maneira de fazer análise… mas fez questão de deixar claro que poderia haver outras, conforme o perfil de cada terapeuta (MEDINICOFF, 2018).

Agora atendemos encarando a nossa própria imagem. Fato inédito e, algumas vezes, constrangedor. Embarcamos numa viagem com nossos clientes. Juntos e em igualdade de posição: novidade para os dois lados.

A virtualidade passa a ser um novo terceiro na relação entre analista e analisando. Terceiro, esse, que não podemos dominar totalmente. Ele nos prega peças como congelar a imagem, cair a conexão, enfim, um terceiro maroto nos pregando algumas peças que fogem ao nosso controle e afetam diretamente o nosso trabalho.

Não raro, os clientes pedem que eu mude de posição para que possam me ver melhor. Do mesmo modo, às vezes na tela do computador, aparece para nós só parte do rosto do cliente.

O processo de análise vai muito além das paredes do consultório. O próprio Freud já adotara a análise peripatética, quando atendeu o compositor Mahler caminhando com ele por quatro horas lado a lado. Esta teria sido a única consulta de Freud com Mahler (1910). Posteriormente, Freud definiu esse encontro como terapia breve (MITCHELL, 1958).

Creio que, mesmo depois do fim dessa pandemia, a psicanálise não será a mesma. Já houve uma mudança que não poderá jamais ser anulada. Ficamos cara a cara com nossos clientes, um dentro da casa do outro. Isso não tem volta. Nada será como antes, a crise do corona nos marcou para sempre.

Curiosamente, tenho a sensação de que as consultas ficam mais longas, mais intensas. Ficamos mais próximos. O fato é que exigem mais de nós. Ainda sobre o tempo, as consultas começam no horário marcado ou no horário em que a comunicação se estabelece? Considerando os eventuais congelamentos e interrupções de internet, como precisar o princípio e o fim de uma sessão?

Quando a epidemia foi oficialmente declarada ninguém esperava que fosse tanto tempo e muito menos que não saberíamos até quando. Quanto tempo levará até estarmos todos imunizados e se estaremos vivos até lá. Medos comuns a todos: a vida, a economia, a educação…

As questões continuam as mesmas: quanto tempo durará esse processo de terapia? Quando terminar a pandemia, continuaremos as consultas por computador ou terei que ir a seu consultório novamente? As respostas, não sabemos, vamos ter que descobrir juntos. Como sempre ocorre nessa viagem chamada “psicanálise”.

REFERÊNCIAS

GATES, B. “The next outbreak? We’re not ready”. TED Talk, 2015.

MEDINICOFF, E. Dossiê Freud, 2018.

MITCHELL, D. Mahler and Freud. Chord and Dischord, 1958.

NADIA COURI

Psicanalista, membro da SPID desde 2017, Sepla (1982-1986), psicóloga supervisora da Pensão Margaridas (1982-1992). Atendimento individual desde 1980.

Email: nadia.couri@gmail.com