PSICANÁLISE EM TEMPOS DE PANDEMIA

Angela Coutinho

De um lugar longínquo nos chegou a notícia de um “tsunami” que assustou aquele lugarejo. Contágio. Ameaça de morte por um vírus desconhecido. O mundo inteiro, desavisado, assistia de longe àquele espetáculo avassalador. De longe. A ameaça ainda não tinha chegado do outro lado do mundo. Era só fechar as fronteiras, os aeroportos. Parecia fácil conter o tsunami. Não foi. Aparentemente do nada, o mundo inteiro foi sendo arrastado e quase não restou pedra sobre pedra. Houve uma reviravolta no status quo da humanidade. Isolamento social era a palavra de ordem. Todos em casa. Nada nem ninguém permaneceu como era. O mundo estancou de repente, parou, era outro, será outro, nunca mais o mesmo.

Literalmente todo mundo foi atingido de um modo ou de outro. Cada continente, cada país, cada região, cada grupo, cada pessoa foi afetada à sua maneira. Diante de um mesmo tsunami de problemas que abalou o planeta, a pluralidade de reações nos confrontou, de cara, com a diferença. Por um lado, a ameaça atingia igualmente homens e mulheres, pobres e ricos, heterossexuais, homossexuais e transsexuais; por outro lado, a reação à ameaça tornou evidente a diversidade dos contextos socioculturais e emocionais em cada grupo e em cada pessoa. O confronto com nossa humanidade e impermanência não se deu de um modo homogêneo.

Diante de uma mesma “verdade material” (objetiva), inúmeras verdades são construídas, uma pluralidade de “verdades históricas”. Com Freud aprendemos que “verdade histórica” é uma interpretação subjetiva; o que é verdadeiro para o indivíduo num período de sua história. Há, aqui, um trabalho psíquico, uma construção pessoal, mas não inteiramente arbitrária. Muitos fatores contribuem para essa construção. E há sempre um núcleo de “verdade material”. Num processo analítico, não é propriamente o passado que o analisando evoca e sim o “seu” passado, isto é, uma construção mítica, uma interpretação, um ponto de vista acerca de uma história objetiva irrecuperável.

Para pensar a psicanálise em tempos de pandemia, buscamos uma metáfora adormecida e que agora ganha novo vigor. Foi um verdadeiro achado revisitar a questão da moldura e processo.

A metáfora da moldura e processo faz parte do dispositivo analítico e foi pensada pela primeira vez há décadas por José Bleger e repensada nos anos 1980 por Horus Vital Brazil, abordando a metodologia do processo analítico, em que o analista é um observador participante. Neste momento crítico que estamos vivendo, essa metáfora vem a calhar. Por isso, antes de mais nada, vamos recuperar esta ideia.

Um quadro tem como limite sua moldura. Do mesmo modo, o processo analítico é emoldurado pelo enquadramento (moldura), delimitando a situação analítica. Há também o contexto da situação analítica, fora da possibilidade de controle pelo par analista-analisando, que implica acontecimentos que ocorrem no tempo e na área geográfica em que se dá o processo.

A situação analítica se configura como um sistema ternário que inclui a moldura (enquadramento), por um lado, e o processo (“diálogo analítico”, interação comunicativa, estrutura vivencial), por outro. Esse dispositivo é condição de possibilidade para que a análise se torne possível.

A moldura, como uma janela, inclui as invariantes, o que é fixo. Abrange a função do analista e nem sempre os dados do contrato, tais como honorários, local, frequência e tempo de sessão, que podem ou não fazer parte da moldura. Por exemplo, antigamente, as férias do analista eram demarcadas previamente, em geral em fevereiro. Era uma invariante, hoje não mais. O uso do divã era concebido por alguns analistas como algo fixo, condição para entrada em análise; sendo que, para outros, nunca foi condição, não sendo, portanto, incluído na moldura. Os dados do contrato são determinados por diferentes fatores e podem ou não ser fixados. Por outro lado, o lugar do analista, ou melhor, o analista como função é uma invariante que não pode faltar. O exercício da função analítica não se confunde com o lugar que ele ocupa: consultório e poltrona, por exemplo. E independe dos dados do contrato. O analista como função faz parte da moldura e é condição para a escuta analítica. Analista como presença-ausente, como causa. Como suporte para a atualização do universo fantasmático do analisando na transferência. Suporte para acolher a realidade psíquica do analisando e até mesmo o irrepresentável. Aqui, ele silencia enquanto sujeito e passa a querer não desejar, isto é, impera o “desejo do analista” de fazer a análise funcionar, de “dobrar as forças sobre si”, sem memória e sem desejo. Trata-se de uma “escuta amorosa”, de um inclinar-se ao outro enquanto alteridade. O analista se faz silêncio, convidando o analisando, com o suporte do seu corpo, a enunciar as palavras que lhe dão um lugar no mundo. O analista como função conduz a análise, fazendo valer a regra fundamental da associação livre e da atenção flutuante. De onde advém a interpretação, a simbolização do imaginário, isto é, a desconstrução de sentidos congelados. É o lugar do não processo, da suspensão do diálogo.

No entanto, esse analista-função não é “desencarnado”. Essa função analítica é exercida por um sujeito, que está presente o tempo todo. Que está em causa. Ele também está em análise, participando ativamente do processo. Não é um suposto observador onisciente, fora da cena analítica. Como é esta participação ativa, de que modo o analista entra em cena?

O processo, em contraposição à moldura, é puro movimento. Aqui o analista se perde enquanto função e ocorre o que Freud apontava como “comunicação de inconscientes”. Afetar e ser afetado, uma afetação mútua. Há uma estrutura vivencial, um processo de interação, no qual o comportamento de um dos membros determina a resposta do outro e vice-versa. É o campo transferencial em ação, em que comparecem analista e analisando com suas respectivas realidades psíquicas. Há aqui uma “imaginarização do simbólico”, isto é, um encontro de sentidos congelados, em que os universos fantasmáticos de ambos se conectam, num fogo cruzado simétrico, numa linguagem que inclui também o corpo falante, com seus gestos e tonalidades. Trata-se, no processo, de uma estrutura vivencial, de um sistema dual que inclui o par analista analisando. Falamos acima da situação analítica como um sistema ternário, ao considerá-la como um todo, abrangendo moldura e processo. Nesse caso, temos o trio analista-função, analista-sujeito e o analisando.

O analista, desse modo, é considerado um “ser duplo”, paradoxal. Trata-se de uma presença-ausente, que “causa” e está “em causa” a um só tempo. Por isso dizemos que o método analítico é a observação participante. O analista observa um processo do qual ele participa, do qual se dá conta. Para tal, opera uma “dissociação instrumental”, em que ele fica, a um só tempo, dentro e fora da cena analítica. Esse é um legado da análise pessoal do analista. Na passagem de analisando a analista, ele é, em princípio, analista da sua própria experiência de análise. Um pouco mais liberado das pressões do outro sobre si, o analista adquire maior liberdade subjetiva para se deixar afetar, ficando maleável ante suas defesas. Lacan dizia que não há análise, por mais exaustiva que seja, que vacine o analista contra ser afetado, o que equivocadamente se entende por contratransferência. Melhor dizer que há transferência também do lado do analista. Se ele não se deixa levar inteiramente por essa afetação é porque um desejo mais forte o habita: o “desejo do analista” de fazer a análise avançar. Aí entra em jogo o analista como função, tornando possível a “escuta analítica”.

É nesse sentido que vemos a experiência psicanalítica referida a um analista (função) e dois analisandos (o analista como sujeito e mais o analisando). Na moldura, o analista dirige a análise, observa o que ocorre no processo e interpreta, simbolizando o imaginário, isto é, desconstruindo os sentidos congelados. Essa função, na maior parte das vezes, é exercida pelo próprio analista, mas nem sempre. Em muitos momentos, é exercida também pelo analisando. No processo, por outro lado, os dois analisandos fazem parte de uma estrutura vivencial, do encontro das suas realidades psíquicas. O objeto transferencial resultante dessa interação é irredutível a cada um dos membros. É uma experiencia compartilhada. Realizar a experiência psicanalítica é acompanhar as vicissitudes desse objeto transferencial.

Revisitamos a metáfora da moldura e processo bem como o método da observação participante para caracterizar a situação analítica porque, neste momento de pandemia, com a clínica psicanalítica on-line, ela cai como uma luva.

Os psicanalistas – todos afetados pelo “tsunami” – foram sacudidos em seus alicerces e precisaram se dobrar ao inusitado, se problematizar, se reinventar. Não mais aquele enquadramento clássico: consultório, poltrona e divã. Se uma clínica psicanalítica on-line era uma prática usual por diferentes contingências, como opcional, hoje passou a ser a única viável. Houve uma necessidade e uma pressão de urgência. A ação não podia esperar, era mister criar condições de possibilidade para viabilizar a prática psicanalítica. Era preciso pensar uma base teórico-clínica para sustentar o atendimento on-line e a metáfora da moldura e processo veio ao encontro dessa necessidade.

A tela do equipamento através da qual se dá o encontro analítico exerce um papel fundamental na constituição do dispositivo. A tela aproxima e afasta. Protege e expõe. Há um paradoxo na função desse equipamento. Ao mesmo tempo que ela possibilita o encontro, a intimidade do encontro, ela mantém uma distância entre o par analítico. Funciona como um anteparo que possibilita um mergulho no campo transferencial, no qual a afetação mútua é condição de possibilidade. A tela emoldura a intimidade desse encontro, a fim de caracterizá-lo enquanto analítico. Afetar e ser afetado é condição necessária, mas não suficiente para haver análise. É necessário haver uma função analítica, é necessário haver uma moldura como contorno para essa afetação. O analista, esse ser duplo, comparece ao encontro e ao mesmo tempo se mantém fora, na moldura, numa “dissociação instrumental”. Dentro e fora a um só tempo.

Hoje, um contexto aterrorizador nos oprime. A incerteza é uma constante no cenário mundial, cada um deixado à sua própria sorte. Frutos do nosso momento particular, tecemos, cada um de nós, o próprio contorno para dar algum sentido a essa situação crítica. O desafio maior, para nós, é não sobrepor a nossa realidade psíquica à de nossos analisandos. Estamos enfrentando o mesmo tsunami, mas cada um dá seu colorido singular a esse fato inexorável.

Foi com esse pano de fundo que vivemos, ao longo dos últimos três meses, uma experiência compartilhada no nosso seminário sobre clínica psicanalítica on-line que muito nos aproximou. Dividimos nossas perplexidades e descobertas nesses tempos de pandemia e todos saíram ganhando com a troca de experiências; algo foi sendo decantado, como um núcleo consensual acerca da clínica psicanalítica on-line.

O limite de cada um, tanto do lado do analista quanto do analisando foi um tema recorrente. O limite da análise é o limite do analista. Até quanto podemos suportar “dobrar as forças sobre nós” para nos inclinar sobre nosso analisando quando o mundo parece nos oprimir e sufocar nossa liberdade? O desafio maior é silenciar
como sujeito diante desse contexto barulhento e oprimente. Como acolher nosso analisando no seu desamparo perante o “tsunami”, se nosso próprio medo pode nos impedir de escutá-lo? Como não confundir o nosso medo com o medo dos nossos analisandos? Como acolher a resistência do analisando diante do desmoronamento do status quo da humanidade, se ele reluta em admitir que é possível ser acolhido na sua dor?

Freud recomendava aos analistas que se mantivessem “em reserva”. Reserva, no sentido de reservar ao analisando aquele espaço e tempo da sessão, sem invadi-lo com nossas questões, com nossos preconceitos. Reserva, no sentido de uma inclinação ao outro, enquanto alteridade, deixando-nos em reserva. Recolhendo-nos para acolher o outro. Dedicação exclusiva, garantindo a privacidade daquele encontro, evitando ao máximo que o nosso entorno interfira. É isso que caracteriza o que chamamos de “escuta amorosa”. A importância da reserva se evidencia na clínica on-line, em que o atendimento não é feito no consultório e as interferências de nosso entorno às vezes podem dificultar a privacidade necessária à confiança em nós depositada e ao respeito que nosso analisando merece.

Apesar das inúmeras questões que a clínica psicanalítica on-line provoca, constatamos que não apenas funciona, mas muitas vezes nos surpreendemos por funcionar melhor, produzir efeitos com uma intensidade ainda maior do que no atendimento dito presencial. Na verdade, o atendimento virtual é também presencial e muitas vezes essa presença é ainda mais viva e vivida.

O acolhimento é um dos aspectos que aí se destacam. O analista entra concretamente no espaço do analisando. Como se fosse uma assistência domiciliar. O que surge na tela, desde a aparência, gestos e postura do analisando, nos confronta com sua intimidade, no seu hábitat. Para alguns, esse confronto pode ficar insuportável, sem o aparato protetor e organizador que a ida ao consultório poderia oferecer.

Embora a preocupação com a imagem não seja uma prerrogativa exclusiva do atendimento virtual, o foco da atenção na imagem aí se evidencia. Os analisandos vão para o encontro virtual descabelados, de pijama, enroscados nas almofadas ou produzidos, maquiados e com voz impostada; não é sem importância a forma com que comparecem à sessão, ao contrário. O conteúdo por vezes fica até minimizado. A musicalidade da fala, os gestos e a expressão corporal se impõem. É uma fala através do corpo, o corpo fala. Há, ao mesmo tempo, uma escuta do olhar. Apesar de o encontro ser virtual, o corpo fica mais presente, mais evidente, por ter o véu protetor da moldura. A tela protege e exibe. Esconde e mostra. A proteção da tela possibilita uma expansão dos limites da análise.

Apesar de no atendimento virtual os sentidos estarem menos presentes, a sensorialidade do analista é vivida com mais intensidade. Como se a tela protetora da moldura nos permitisse um mergulho mais livre no processo. Ao mesmo tempo, como se a tela que distancia e aproxima pudesse justificar uma finalização da sessão mais abrupta, com efeitos inesperados.

Outro aspecto que fica ressaltado é a relação com o tempo no atendimento virtual que não é diferente do atendimento no consultório. No entanto, fica mais evidente, no atendimento virtual, a lógica do inconsciente, uma outra temporalidade que não a cronológica. Não é à toa que as transformações se dão numa velocidade ímpar, mas pode levar a uma precária reflexão. Como se o tempo de elaboração ficasse exíguo pelas sucessivas demandas pós-sessão. São muitas atividades on-line para organizar a vida nesses tempos de pandemia, e a análise pode ocupar um lugar entre outros e não ser uma prioridade.

Em um de nossos encontros foi relatada uma situação clínica em que o analista se percebeu “em causa,” atuante no cenário analítico, sendo observado por ele mesmo. De um mal-estar gerado no processo, o analista despertou por ter se dado conta de que ambos, analista e analisando, pareciam estar em certa zona de conforto, num conluio. Passou a se indagar sobre a banalização daquela situação. Ao se indagar, ocupou a função analítica para além do processo, em que a afetação mútua havia cegado os dois.

Por último, uma questão fundamental trazida para nossa troca de experiências é a relação com a tecnologia, que em alguns gera resistência e em outros é muito bem-vinda e acatada como uma provocação do destino para nos atualizar. Diante do novo, pode haver uma dupla reação que leva a certo radicalismo. Ora uma resistência a abraçá-lo, aprisionando-se a uma nostalgia, a uma melancolia em relação ao momento anterior em que tudo era diferente e melhor; ora uma negação do que ficou para trás, como se a nova ferramenta que a tecnologia nos oferece jogasse por terra nossa experiência anterior. Sem precisar romper com a tradição, há novidades que a tecnologia nos proporciona que podem ser muito bem-vindas. Precisamos, antes de mais nada, desconstruir os preconceitos em torno dela.

A tecnologia, sobretudo no que diz respeito aos contatos a distância, tem sido muito malvista. Como se ela fosse a responsável justamente por substituir o contato direto entre as pessoas e, portanto, a conexão verdadeira; um simulacro que forjasse um contato, ou seja, uma promessa vazia e, na verdade, provocasse o distanciamento e a solidão. Isso pode estar ocorrendo, sim, não necessariamente por causa da tecnologia. A tecnologia oferece uma ferramenta que pode ter um uso ou outro, a depender de muitos fatores em jogo. Em relação ao atendimento virtual, testemunhamos o uso desse instrumento tecnológico, como um meio de expansão dos limites da análise, de uma otimização do tempo e do atendimento.

“Há males que vêm para o bem”, diz um dito popular. A pandemia causada pelo coronavírus, a despeito do horror que espalhou pelo planeta, nos trouxe uma oportunidade única de revirar todos os valores, estilos de vida e – por que não? – nossa maneira de pensar e de viver a psicanálise. Ela pode funcionar como uma alavanca para desfazer preconceitos e construir novas formas de estar no mundo e interagir com as pessoas.

ANGELA COUTINHO

Psicanalista, doutora em Psicanálise, membro titular da SPID.

E-mail: coutinhoangela@gmail.com