Leandro Santos [1]
A proposta da revista Ensaios de dedicar um número à reflexão sobre os impactos da pandemia do COVID-19 no campo psicanalítico é bastante oportuna, necessária e urgente. Refletir sobre os efeitos da disseminação de um vírus globalizado, e potencialmente letal, tornou-se um imperativo para nossa prática. Os atendimentos de nossos analisandos, a nossa própria análise pessoal, os grupos de estudos, de pesquisa e seminários e as supervisões clínicas se viram diante da necessidade imperativa de se “virtualizarem” em um enquadramento on-line.
Terei como objetivo refletir sobre o impacto da situação de calamidade sanitária do COVID-19 na prática psicanalítica. A ideia é transformar as ponderações aqui levantadas em pretexto para trocas que possam enriquecer e ampliar o entendimento do que se passa na clínica em nosso momento atual. A possibilidade de se abrirem vias de discussão entre pares já é por si só uma excelente oportunidade de remanejarmos o sentimento de desamparo que este momento tão difícil pode nos acarretar.
É importante enaltecer os esforços da SPID em não paralisar ou suspender as suas atividades institucionais. Nossa sociedade permaneceu ativa e produzindo interlocuções neste período tão difícil e delicado. Manter vivo o debate me parece ser a melhor estratégia de enfrentamento da crise sanitária/econômica/política que atravessa de modo central nossa prática. Através dos encontros em seminários e grupos de discussão on-line nos mantivemos sintonizados e compartilhando nossas experiências, dúvidas e angústias.
Para abrir minha reflexão, gostaria de destacar um ponto muito discutido entre colegas psicanalistas. Trata-se da dimensão democrática do COVID-19. A disseminação deste vírus atingiu a todos, sem distinção de classe, de cor, de religião, de orientação sexual etc. Neste sentido, tanto o analista quanto o analisando se viram atingidos pelos impactos da pandemia. Ambos estão obrigados a olhar para o inimigo comum, de modo que uma primeira questão começa a se desenhar. Poderíamos pensar que um tipo de ‘horizontalidade’ entre analista e analisando se impôs neste momento?
Tenho observado que as análises de fato se ‘horizontalizaram’. Muitos pacientes começaram a verbalizar uma preocupação direta e explícita com relação à minha saúde e segurança. “Você está em segurança?”, “Você está bem?”, “Você está isolado?” foram expressões dirigidas a mim no início da pandemia. Diante da catastrófica realidade sanitária da cidade onde resido (uma das mais calamitosas do estado do Rio de Janeiro), compreendi que esta preocupação precisava ser, em alguma medida, respondida.
Creio que algo da ordem da necessidade de asseguramento e resguardo da minha figura – e da função que ela representa – se colocou em cena. Acredito que poder assegurar e oferecer um mínimo de estabilidade seja necessário para que a análise de meus analisandos pudesse continuar a avançar. Nesse sentido, valorizo a ideia de que cabe ao analista a responsabilidade pela constância das variáveis que compõem o enquadre do processo de análise. No contexto em que nos encontramos, penso ser necessário acolher a dita “horizontalidade” como uma estratégia de garantia de uma estabilidade.
Porém, a questão que se coloca é: como realizar este acolhimento respeitando as diretrizes fundamentais que norteiam o trabalho psicanalítico? Principalmente no que se refere à noção de que o trabalho psicanalítico deve ser realizado sempre na abstinência? Para começar a responder a esta questão, sinto ser oportuno recuperar uma contribuição precisa de Sándor Ferenczi. Para este autor, o trabalho analítico exige do analista que ele se adstrinja de uma possível “hipocrisia profissional” (FERENCZI, 1933).
Sigo a indicação de que o analista precisa se mostrar franco e verdadeiro, sem que uma posição de ‘neutralidade hipócrita’ tome conta de sua disposição para ouvir. Endosso a ideia de que a hipocrisia do analista é a variáveis mais iatrogênica ao processo analítico, capaz de produzir efeitos catastróficos na análise. Por conta disso, tenho me permitido acolher e trabalhar a ideia de que estou com meus pacientes na mesma maré, a maré do vírus. No entanto, não deixo de lembrar que cada um dos personagens da cena analítica terá diante de si recursos diferentes e singulares para atravessar esta onda, ou melhor, esse tsunami.
Com isso, consigo trabalhar a ideia de que a dita ‘horizontalidade’ – que se mostra oportuna e estratégica – não representa uma quebra da necessária assimetria analítica. No desenrolar de um processo de análise, horizontalidade e simetria não me parecem ser noções sinônimas. Acredito que a assimetria entre analista e analisando deve se manter como um dos fundamentos da prática psicanalítica, seja ela em tempos de crise/pandemia ou não. Mas o que exatamente a dimensão da assimetria quer dizer?
Acredito que a função analítica apresenta um papel específico, não simétrico, no interior de um processo analítico. Jean Laplanche (1993) nos diz que cabe ao analista velar pelo respeito às regras fundamentais da análise. A perspectiva laplancheana nos aponta que o analista é responsável pela garantia de três elementos fundamentais: 1) a constância do enquadre; 2) a ‘pilotagem’ do método; e 3) a guarda do enigma e a provocação da transferência.
Sem a pretensão de esgotar as contribuições de Laplanche, encadearei meu raciocínio na direção da ideia de que o analista – e não o analisando – é responsável pela sustentação das regras fundamentais da psicanálise. A sustentação da associação livre e da atenção flutuante – que são os elementos definidores de uma análise – me parece ser prerrogativa daquele que encarna a função de analista. É o respeito a estas duas regras que vai garantir que o enquadre psicanalítico se instaure. Para mim, a valorização da fala, a constância do tempo das sessões, a periodicidade dos encontros, o uso do divã ou da poltrona, a intervenção interpretativa etc. só se justificam se as regras fundamentais estiverem resguardadas e operantes.
Compreender o papel das variáveis que compõe o enquadre se torna então uma tarefa fundamental para reflexão da psicanálise em tempos de pandemia. Exatamente por conta de terem sido estas variáveis as que sofreram os primeiros impactos. A rápida disseminação do vírus COVID-19 nos colocou diante da necessidade imperativa de migrar todos os atendimentos para a modalidade on-line. Aqui não nos coube escolha: a realidade do vírus nos obrigou a mudar o enquadre.
Em discussão com colegas e interlocutores psicanalistas, fui percebendo que muitos – entre os quais eu me incluía – apontavam a importância de refletirmos sobre as perdas que a modalidade de atendimento on-line poderia acarretar à análise. Em um primeiro momento, pouca atenção foi dada à possibilidade de positivação da modalidade on-line de atendimento. A falta de uma presença física foi apontada inicialmente como uma dificuldade no caminho da análise, uma vez que diminuiu o campo perceptivo e sensório tanto do analista como do analisando.
É verdade que a utilização do celular, ou do computador, como meio pelo qual o tratamento se efetua acaba privando a análise de alguns elementos perceptivos e sensoriais. No entanto, passados já alguns meses que nos encontramos na obrigatoriedade da utilização do atendimento on-line, outros elementos que antes podiam permanecer silenciados puderam vir à tona. A importância de se trabalhar com a imagem, com as tonalidades e ritmos da fala, com o silêncio e com a ausência, por exemplo, puderam ganhar novas possibilidades e sentidos.
Entre estes elementos citados, a questão do silêncio me sensibilizou de forma profunda. No início de meus atendimentos on-line percebi que o silêncio não era um elemento bem-vindo nos encontros analíticos. Qualquer possibilidade de instalação dele ou era logo preenchido por uma alguma fala de meus analisandos ou era preenchido por uma intervenção minha. Inicialmente, interpretei esta questão como algo da ordem de uma necessidade de garantir que o outro estava ali, ou seja, que a conexão entre a dupla analítica não havia se interrompido. Algo ao redor da proteção da constância do enquadre estava se colocando.
No entanto, para além dessa constatação – extremamente relevante, a meu ver –, penso que a necessidade de preencher o espaço com uma fala que não abre margem ao silêncio também está a serviço de outra coisa. É como se uma incapacidade de suportar o vazio do silêncio e a imprevisibilidade que ele potencializa ganhasse o protagonismo da cena. Penso que essa incapacidade acaba por se misturar com a perplexidade diante do completo desconhecimento dos destinos os quais a pandemia pode nos levar. A quantidade assustadora de mortes causadas por essa doença colocou o tema da nossa própria finitude na crista da onda. Creio que encontrar-se com o vazio da finitude tem repercussões profundas em qualquer processo de análise. Em uma situação de pandemia – como a que estamos atravessando – acredito que este encontro tem um sentido ainda mais profundo.
Porém, acolher o horror da finitude não me parece ser um elemento que inviabilize o trabalho de análise. O imperativo do atendimento on-line se configura como um importante momento para refletirmos sobre a radicalidade do que se entende como a ‘elasticidade’ da técnica psicanalítica, tal como sugere Sándor Ferenczi (1928/2011). A perspectiva ferencziana nos fala da importância de uma postura flexível diante dos imprevistos, dos limites e das peculiaridades de cada situação clínica.
O recado de Ferenczi parece ser bem claro: diante de um limite, a análise precisa se flexibilizar. A grave situação sanitária nos impôs o limite de não podermos atender mais presencialmente nossos analisandos, o que nos obrigou a providenciar uma modificação plástica em nossos atendimentos. A pergunta que precisamos nos fazer é se a única possibilidade colocada diante de nós – a análise on-line – seria impeditiva de um processo genuíno de análise. Ou melhor, se o meio on-line atingiria o enquadre de modo a inviabilizar o respeito às duas regras fundamentais da psicanálise.
O momento atual não nos dá escolhas. Todo o movimento psicanalítico foi obrigado a incorporar tal elasticidade em sua prática. Encontramo-nos diante de uma modalidade de fala e escuta que está atravessada por um enquadre diferente do que estávamos habituados nos atendimentos presenciais. Penso que não podemos tratar esta questão em termos qualitativos de “presencial é melhor, virtual/on-line é pior”. No meu entender, colocada sob estes termos, a reflexão fica severamente empobrecida, tornando impossível trabalhar aquilo que se apresenta no aqui e agora da situação analítica.
Nesse sentido, faço coro à ideia de que a principal e mais efetiva resistência que se apresenta à uma análise é aquela que se situa do lado do analista. O saudosismo de uma prática específica, emoldurada no modelo presencial clássico, em que qualquer possibilidade de mudança se coloca como desvio da psicanálise pura, só atualiza um tipo de ‘fetichização’ da técnica pouco aberto ao encontro com o que é desconhecido. Se nos prendemos a um modelo de enquadre único e fixo, corremos o risco de resistirmos ao encontro genuíno com os nossos analisandos.
Acredito que se o analista consegue manter vivo dentro de si uma flexibilidade capaz de acolher o desconhecido e concomitantemente resguardar e proteger o estabelecimento das regras fundamentais, a análise pode se estabelecer. E isso independente do meio pelo qual ela é realizada. Se o analista não tem interiorizado em si o entendimento da lógica da fala e da escuta analítica, não há enquadre externo que seja capaz de resguardar e garantir o andamento de um tratamento psicanalítico. Para mim, essa é a condição para que uma análise possa acontecer.
Penso que em meio à contingência das variáveis do enquadre algo precisa permanecer fixo e imutável. O respeito às regras fundamentais da análise não seria contingente. Para mim, essa é a dimensão invariável fundamental em qualquer processo de análise, seja ele presencial ou on-line. Se ele puder ser resguardado na modalidade de atendimento on-line não vejo motivos para desacreditarmos da potência analítica neste estilo de encontro. Porém, isso não quer dizer que o meio no qual a análise se desenrola seja sem importância, mas sim que ele é sempre relativo e contingente. E isso está longe de ser um problema!
Finalizo minha reflexão, apontando que, em minha perspectiva, nunca há espaço para um projeto preconcebido no percurso de uma análise. Sempre é necessária uma abertura ‘benevolente’ ao que é desconhecido. Além disso, acredito que a análise precise sempre trabalhar no plano temporal do a posteriori. Só saberemos de fato sobre os impactos da pandemia na clínica na posterioridade. Ainda estamos no olho do furacão, contando apenas com as regras fundamentais da análise como ferramentas. Só com elas em mãos é possível nos lançar no obscuro de uma viagem da qual só conhecemos o ponto de partida.
REFERÊNCIAS
FERENCZI, S. Confusão de línguas entre os adultos e a criança. 1933. In: FERENCZI, S. Obras Completas – Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
FERENCZI, S. A elasticidade da técnica psicanalítica. 1928. In: FERENCZI, S. Obras Completas – Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
LAPLANCHE, J. Da transferência: sua provocação pelo analista. 1993. Percurso 10 – Dossier Ferenczi. Ano VI – 1º semestre, 1993.
LEANDRO SANTOS
Psicanalista, membro da SPID, doutorando em Teoria Psicanalítica – Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
E-mail: leandrorfs@uol.com.br
[1] Trabalho inédito.