Além da pílula para oniausência

Tabatah Flores

Psicanalista, membro associado da SPID, e-mail: tabatahflores@gmail.com 

Importantes autores contemporâneos que se debruçaram sobre os estudos da sociedade atual demonstram consenso acerca da ideia de que o capitalismo do século XXI, chamado de tardio, uma espécie de hipercapitalismo, acelerado e potencializado pela globalização da informação e pelas redes sociais, reduziu o sujeito a cliente e produto. Transformou, portanto, as relações sociais em relações comerciais.

Outro fator importante que se soma a essa problemática é a agressividade inata como condição humana (FREUD, 1929/1976). Desse modo, por ser preciso dar um escape a essa agressividade, tendo em vista que, para viver em sociedade, é preciso contê-la, mostra-se tentador se unir a grupos de indivíduos com algumas afinidades que, entretanto, têm um único e real propósito: hostilizar quem a ele não pertence.

Nessa tentativa de escoamento da agressividade, somada à globalização decorrente do capitalismo, à comunicação generalizada, ao excesso de informações, e, sobretudo, a uma cultura de superdesempenho — na qual os indivíduos que poderiam usufruir de maior liberdade, por serem economicamente menos vulneráveis, paradoxalmente, tornam-se, no entanto, seus próprios exploradores, com autocobranças de produção e excesso de trabalho —, observa-se o surgimento de um adoecimento psíquico da sociedade, com novas patologias sociais decorrentes do esgotamento do sujeito, como a síndrome de burnout e a depressão ansiosa

(BYUNG-CHUL HAN, 2017).

Tais sintomas se revelam também por meio da maior busca por métodos de anestesia da subjetividade ( MARIA HOMEM, 2020). O cansaço absoluto, em razão do excesso de estímulos, de informações e de autocobrança, leva o sujeito a anestesiar-se, alienar-se de si mesmo. Deixar de existir, então, vira o remédio da vez. Não é mais apenas a dor que precisa ser aplacada com analgésicos, é a existência. Afinal, existir tornou-se demasiadamente cansativo. Assim, recursos tecnológicos como a televisão e o celular vão sendo utilizados para viabilizar o não estar em nenhum lugar, a fim de eliminar sua existência, sem precisar de fato morrer, nem deixar de trabalhar e comprar. Seria como morrer em vida, ou viver em morte… como um zumbi.

A tecnologia, então, aparece como uma das criadoras da doença, mas, também, como o remédio para o mal que ajudou a causar. Esse remédio seria a possibilidade de estar ausente de sua própria vida, sendo um sujeito multitarefa, que consegue executar diversas atividades ao mesmo tempo, produtivo, conectado a diversas redes concomitantemente, em diversas conversas, sem que se estabeleça um vínculo verdadeiro nem com quem está perto fisicamente, nem com as supostas companhias virtuais. Evita-se, assim, o mal-estar gerado pelo convívio com as alteridades, com os conflitos provocados a partir dessa troca.

O rompimento com a interação humana é, inegavelmente, um método bastante enérgico utilizado quando se deseja evitar o mal-estar oriundo do conflito causado pelas alteridades (FREUD, 1929/1976). Ao se isolar, o sujeito se protege do sofrimento resultante das relações com outras pessoas. No entanto, o incômodo do desamparo surge e incentiva a busca pelo pertencimento. Tendo em vista que esse sujeito exausto quer pertencer sem, entretanto, precisar sofrer as consequências doloridas e cansativas da experiência interativa com outras pessoas, ele limita sua busca a grupos homogêneos.

Assim, esse sujeito que não suporta alteridades vislumbra os espaços homogêneos como único lugar possível de transitar. O espaço virtual, por sua vez, facilita a criação dessas bolhas, por meio de grupos com pensamentos iguais com a propagação de ódio aos grupos de pensamentos opostos. Com cada grupo homogêneo em sua bolha, falando para si mesmo e bloqueando, tornando invisível o que é diferente, evita-se o desconforto do encontro entre desiguais, possibilita-se o escoamento da agressividade ao direcioná-la aos grupos opostos e, por isso, impede-se, infelizmente, o surgimento da síntese dialética, que seria fundamentalmente necessária para a criação de novas teorias. Afinal, se não há confronto de teses, e sim invisibilidade das ideias diferentes, não há chance de criar algo novo.

Por sua vez, em momentos em que o sujeito não teria como escapar desse confronto com as alteridades, os aparelhos eletrônicos de meios de comunicação permitem que o não lugar — que seria osespaços onde não há troca de afeto, nem de ideias, onde o sujeito não vive e dos quais não se apropria, nos quais tem apenas uma relação de consumo (MARC AUGÉ, 1992) seja acessado a qualquer instante.

Esse não lugar passa a ser acessado até mesmo em espaços que seriam completamente pessoais e de natural troca entre humanos, como o sofá de casa ao lado de sua família. Porém, não é nada incomum a cena na qual o indivíduo, sentado em frente à TV, olha seu celular para, ao mesmo tempo em que interage em aplicativos de trocas de mensagens, se manifestar em redes sociais, comprar o jantar e cobiçar objetos de consumo. Esses dispositivos eletrônicos permitem, desse modo, que o sujeito esteja em um não lugar de forma permanente, se assim desejar. Portanto, hoje, é possível ter o não lugar a todo tempo, porque ele pode até mesmo ser levado com o indivíduo por onde for, em seus bolsos, o que faz do planeta Terra inteiro um possível não lugar.

É importante salientar que, nesse não lugar permanentemente acessível, ou seja, no espaço virtual de relacionamento, as relações com o Outro são apenas relações de consumo, não de troca, ainda que não envolvam propriamente o consumo de objetos. Isso porque a dinâmica entre as pessoas segue como uma dinâmica de mercado: o sujeito se promove, se coloca na prateleira, se expõe, a fim de ser validado pelo Outro, e o faz porque a existência tornou-se um trabalho; então, ainda que não perceba, o sujeito se vê como produto (BAUMAN; MAY, 1975). Assim, nos balcões virtuais, é preciso postar para tentar existir.

Para piorar o que já não estava nada bom, é importante ressaltar que se trata de apenas uma tentativa. Isso porque, nesse mercado das subjetividades, o sujeito, a cada postagem de texto ou foto, busca que “comprem” a validação de sua existência. Em razão disso, se tal postagem não for aplaudida por um número satisfatório de pessoas, ou seja, se não houver quórum suficiente para seu leilão da subjetividade, o sujeito retira a tentativa frustrada do balcão e se reinscreve trazendo outra versão de si mesmo, pois, para ele, isso significa que aquela existência anterior não foi validada, não foi aceita.

Nesse espaço virtual, até as experiências alegres tornam-se produtos em prateleiras. As fotos de viagens são exibidas não como memória, mas como reafirmação de si mesmo, numa construção de uma persona a ser vendida. Assim, viagens, festas, espetáculos e até mesmo vivências cotidianas, como beijo, café da manhã e o descanso na rede, vão sendo esvaziadas de sentido, ao passo que são reduzidas a propagandas. Em razão desse mecanismo mercadológico e compulsivo de interação, perdem-se os benefícios da relação com o Outro, restando apenas ansiedade, frustração e desamparo. Esses sentimentos são consequentes do medo de rejeição, que é experimentada reiteradas vezes, cotidianamente.

Há quem defenda que a busca incessante por esse não lugar se dá porque as pessoas não suportam mais o silêncio, por medo de ficarem consigo mesmas. No entanto, o que se observa por meio dos estudos sociais e econômicos é que, na verdade, o sujeito foi empurrado para essa situação em razão das condições precárias e extenuantes de trabalho, de uma cultura de máximo desempenho, de um superestímulo para o consumo e de uma produção cultural de massa, totalmente pasteurizada. Ou seja, esse hipercapitalismo, que quer extrair o máximo de lucro e de produtividade em um menor tempo possível, não mediu esforços para que as pessoas fossem reduzidas a meros produtores maquinais e consumidores desalmados, ao mesmo tempo. O filme Matrix (Lilly e Lana Wachowski, 1999) apresenta, em uma cena, uma metáfora perfeita para essa condição: os seres humanos imersos e adormecidos em berços líquidos, para gerar energia para a matrix.

Ainda utilizando esse filme como metáfora para essa situação, a psicanálise poderia ser representada pelo personagem Morpheus. Ou seja, a psicanálise simbolizada por aquele que luta para despertar as pessoas para que percebam a realidade que as subjuga, denunciando a matrix e acreditando que alguém desperto dessa ilusão, com as ferramentas e capacidades necessárias, poderia auxiliar o despertar dos outros indivíduos. No entanto, a psicanálise diria para o analista o que Morpheus disse ao Neo: “Eu lhe mostro a porta, mas é você que tem que atravessá-la”.

Tendo a psicanálise também a função de caminho para a libertação das amarras inseridas pelo Grande Outro, a clínica aparece como lugar simbólico, em um momento em que o planeta inteiro é um possível não lugar. Como uma falha no sistema da matrix, a clínica pode ser o espaço de encontro com as alteridades, ainda que seja percebido pelo analisando apenas no olhar ou nas perguntas do analista. Ali, em um espaço sem ruídos e sem distrações, duas pessoas verdadeiramente se encontram. Se fosse apenas isso, já seria riquíssimo, mas a clínica carrega algo mais: a possibilidade de exercitar suportar as alteridades.

Nesse sentido, o analista aparece como um facilitador desse caminho. Sua função poderia ser equiparada ao de diretor de fotografia no cinema, que utiliza o método de paralaxe, modificando, aparentemente, o Real, ao apresentar outro ângulo a quem o observa. Paralaxe, do grego παραλλαγή, que significa alteração, é a diferença na posição aparente de um objeto em relação a um plano de fundo, tal como visto por observadores em locais distintos, ou por um observador em movimento. Foi utilizada na física e na astronomia, para medir as distâncias de objetos muito distantes. No cinema, por sua vez, a paralaxe surge como técnica para dar vida, de uma maneira mágica e intrigante, a uma imagem estática de arquivo. Por trás desse efeito, há uma espécie de representação do deslocamento de um ponto de vista, por exemplo, um travelling de câmera, ou o plongée. Essa técnica é baseada no fato de que, quando um observador se movimenta no espaço, há um deslocamento de perspectiva com a variação da posição relativa entre os diversos planos de profundidade da cena observada.

O analista, portanto, nessa problemática social, pode se dispor a ser o possibilitador da existência em um lugar e também instigador da ampliação da perspectiva do olhar, a fim de fomentar no analisando uma existência sem anestesia e uma admiração pelas alteridades. No entanto, cabe ao analisando percorrer o seu caminho. Como dito pelo personagem Neo, em Matrix: “Para onde vamos daqui é uma escolha que deixo para você”.

Ao escolher atravessar, o analisando torna-se, pouco a pouco, um sujeito com potencial transformador, tendo em vista que passa a suportar habitar um Lugar, podendo dispensar o não lugar, ou seja, existindo. À medida que percorre esse atravessamento, o analisando, para além de suportar e respeitar as alteridades, pode passar a admirá-las. Nesse percurso, o analisando vai também ampliando a perspectiva de seu olhar acerca do Real e, por outro lado, por estar mais liberto das amarras sociais, pode buscar seu Desejo, se permitir o Gozo e, assim, pode abandonar a necessidade de anestesia.

E então, a partir do encontro entre esse analista-diretor-de-fotografia e esse analisando-desperto talvez possa surgir um Terceiro-poesia, que seria o encontro do analisando com a alegria pelo simples gozo da beleza, seja ela qual for para cada um, e esteja ela onde estiver para cada um: nas pessoas, nas atitudes das pessoas, na natureza, nas criações artísticas e filosóficas, nas descobertas científicas… Assim, a beleza, onde estivesse, poderia se tornar inebriante para os sensivelmente atentos, ou para os atentamente sensíveis.

Não obstante a estética, o que há de poético nesse encontro é que essa alegria gerada pela apreciação da beleza não anestesia o sujeito como uma morfina, não o aliena de sua própria vida. Pelo contrário, traz a experiência do existir para o aqui e agora de forma atenta e presente, mas, paradoxalmente, com um efeito de analgesia diante da inevitável dor da existência. Dessa maneira, esse Terceiro-poesia, quem sabe, poderia possibilitar a substituição da pílula azul de Matrix, ou melhor, a pílula da oniausência, pela fonte inesgotável de um leve analgésico natural não farmacológico e sem efeitos colaterais adversos: o poético.

Referências

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.

BAUMAN, Zygmunt, MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, [1976]-1929. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

HOMEM, Maria. A importância da angústia. Disponível em: youtube.com/watch?v=15iK1WK48sc. Acesso em: 10 set. 2021.