O homem que se traduzia – escrituras, tradições, atos linguísticos

Halina Grynberg

  
 דיורפ דנומגיז דנומגיז דיורפ        
 Freud Sigmund
 Sigmund Freud

Psicanalista, e-mail: halinag@uol.com.br

Às vezes, sinto-me equilibrista, como psicanalista. Agora, me proponho tradutora. E reconheço intimamente um viés de identificação particular: como Freud, minha origem é judaica da Europa Oriental, criada nas mesmas línguas familiares que ele. Minha vida também se passa entre traduções e versões de sentido.

Convido-os a refletir sobre o ato de palavra e o enigma da tradução como solo inspirador para a obra teórico-clínica construída por Freud – a partir da premissa de que o aparelho psíquico é também um aparelho de linguagem e memória. Destacarei um aspecto entre tantos: seu exercício de uma vida inteira como pesquisador e clínico surgindo por entre as línguas em que despontava como sujeito da enunciação – iídiche, hebraico e alemão.

Convém caminhar passo a passo e cuidadosamente. O caminho das relações entre língua e psicanálise queima como as areias de um deserto de passagem. Vou indicar algumas definições para que nos comuniquemos melhor no território da linguística com a psicanálise. Sendo morfologia o estudo da estrutura, formação e da classificação das palavras, ela está agrupada em dez classes denominadas classes de palavras ou classes gramaticais: substantivo, artigo, adjetivo, numeral, pronome, verbo, advérbio, preposição, conjunção e interjeição. Aqui, descrevo a estrutura e, portanto, o sistema necessário para a construção de um discurso, e o lugar das coisas/palavras na frase falada ou escrita com finalidade de comunicar.

O alfabeto hebraico, no qual o iídiche também é escrito, embora falado com sonoridade de dialeto alemão (que complexo sintomático é esta língua de exílio e diáspora!!), tem morfologia e sintaxe peculiares nos verbos e consoantes. Vejam a singularidade nos nomes de Freud desenhada na inscrição acima, quando grafado em iídicheדיורפדנומגיז, a língua íntima e familiar dos judeus da Europa Oriental. Nas letras em busca de alinhamento, precariamente inseridas (ou seria enxeridas), reconheço o ponto de origem para minha reflexão.

O abjad hebraico, também conhecido como Alef-Beit, é utilizado para a escrita em hebraico, língua semítica pertencente à família das línguas afro-asiáticas. Criado por volta do século III a.C., o abjad hebraico é utilizado ainda hoje em dia para escrever o iídiche (lembrem-se, língua de sonoridade germânica falada pelos judeus da Europa Oriental e Alemanha na diáspora de dois mil anos, e que continua sendo escrita como um abjad hebraico, fluindo da direita para a esquerda). O termo diáspora é usado para fazer referência à dispersão do povo hebreu no mundo antigo, a partir do exílio na Babilônia, no século VI a.C. E, especialmente, depois da destruição de Jerusalém em 70 d.C. Em termos gerais, diáspora pode significar a dispersão de qualquer povo ou etnia pelo mundo.

Por isso, creio, lutei longos minutos para formatar a inscrição acima, em Word ocidental, a partir do site http://www.hebraico.pro.br, que trazia o nome de Sigmund Freud redigido em hebraico. A programação digital do meu notebook Windows para caracteres ocidentais se recusava a acatar que o começo da oração nominal se movesse a partir da direita e não da esquerda, em modo anti-horário. Fora do Cronos ocidental, a sequencialidade da direita para a esquerda mantém-se mais perto da visão da deriva de sentido que provoca o fluxo anti-horário, anticonvencionalidade da tradição ocidental. É como degustar uma canja de galinha, sendo a sopa feita com aquele macarrão em feitio de letrinhas, todas espalhadas. E posteriormente sugadas em processos de fluxos e ritmos subjetivos, o caos resistindo na continuidade na diferença de influxos do tempo.

Reparem que estou construindo uma hipótese nesta apresentação. Pressuponho que, tendo sido o aprendizado familiar da fala e a alfabetização inicial de Freud em língua hebraica e iídiche, ambas maternas, há um espaço interno associativo entre os objetos designados pela língua, numa rede de multideterminações. Pois só depois haveria a sobreposição da língua estrangeira, extrafamiliar. Sendo o alemão falado no vasto Império Austro-Húngaro e carregado de viés antissemítico, Freud recorria ao recalque de toda uma série de representações e signos linguísticos persecutórios para poder inscrever-se na tradição acadêmica e científica.

Como teria se produzido nele este efeito de subjetivação, e a que ponto se marcou na produção das lógicas conceituais da psicanálise atravessadas pelos fantasmas da cultura e mitologia judaica? No brilhante artigo Metapsicologia/ Fantasia de Renato Mezan, está feita essa conexão entre pensamento, fantasia e afeto no trabalho teórico sobre a relação entre palavras e coisas e representações entre línguas. O recalcamento sendo o mecanismo de defesa mais antigo e o mais importante – descrito por Freud desde 1895 – como um processo pelo qual se eliminam da consciência partes da vida afetiva e relacional, inconformados com a realidade externa ou interna, nem por isso deixam de retornar. Assim, desejos, sentimentos, lembranças considerados inconvenientes ou conflitantes com a realidade externa ou interna são eliminados da consciência e mantidos inconscientes, em constante retorno sintomático e fantasmático e hunheimlich. Há, portanto, uma linguagem exilada que se dá a ver. Ou seja, um nome/coisa do quase indizível, a não ser por aproximação. O conteúdo aparente não esconde o latente. Trata-se, creio, que o que aparece é apenas um triz do que resta.

Adoro ler teses. Criam atalhos enquanto são sólidos instrumentos de pensar, bem construídos e atuais em seu contexto histórico e acadêmico. Zapeando entre diversos recortes e hiperlinks de teorias de alfabetização, esbarro nos educadores e pensadores atuais do construtivismo de Jean Piaget propondo que a escrita seja entendida como um sistema de representação, ou seja, de língua, e não como código de transcrição de fala. E ainda sustentam que as possíveis indagações das crianças diante da escrita têm a ver com a construção dessa escrita como objeto de conhecimento. E mais, na teoria de Piaget, o acesso ao nível pré-operatório, que surge entre os dezoito meses e os dois anos, é caracterizado pelo aparecimento da função simbólica, considerando-se a constituição da função simbólica como sendo a possibilidade de diferenciar o significante do significado, promovendo o reforço para a interiorização das ações. Ou seja, a função simbólica propicia que a criança represente os objetos ou acontecimentos fora do seu campo de percepção diretamente atual por meio de símbolos ou signos diferenciados que transformam essas coisas/sons/palavras em circuitos de metonímia ou metaforização. A partir dessa diferenciação, o sujeito pode recordar-SE, a si mesmo em reflexão, por meio dos significantes e dos significados afastados no tempo e/ou espaço “[…] e todo o sistema de representação implicará […] um processo de seleção que determina o que vai ser retido do objeto representado e o que vai ser deixado de lado”.

Outra tese, outro encontro. Criando atalhos tão sólidos como instrumentos de pensar, bem construídos e atuais em seu contexto histórico e acadêmico, encontrei a tese de doutorado de Maria Rita Salzano Moraes. Temos o seguinte resumo:

Este trabalho é uma reflexão sobre a possibilidade de se pensar a relação Língua Materna-Língua Estrangeira a partir da constituição do sujeito por linguagem. Isto supõe que se faça uma diferenciação entre sujeito e Eu, o que é possível, quando se toma como base para essa reflexão, a hipótese freudiana do inconsciente. Essa hipótese contempla, na sua formulação, uma concepção diferenciada de memória, em que a inscrição da linguagem é um processo de escrita/leitura dos traços mnêmicos, cujo registro simultâneo em sistemas diversos, não permite sua recuperação imediata. A possibilidade de recuperação dos traços mnêmicos passa pelo necessário caminho da expressão verbal, da leitura, de maneira que, se, de acordo com a hipótese de Freud, a memória é, em grande parte, inconsciente, abre-se um outro lugar de discussão sobre o estatuto da dita Língua Materna: ela não representa, para o sujeito, sua plena segurança, dado que aí não pode dizer tudo. […]

Observação minha: daí a vacância produtiva ali onde está inserido o objeto a de Lacan, para o processo transferencial no processo de decifração e atualização da memória e seus enlaces libidinais.

Fica, portanto, suspensa a condição de a Língua Materna ser o veículo da certeza do sujeito. Nessa hipótese está implícita, portanto, uma divisão entre língua e linguagem, sendo a língua o lugar de apresentação da certeza do Eu, mas, simultaneamente, da possibilidade de manifestação da linguagem inconsciente, daquilo que fala no Eu, sem seu consentimento. Como consequência dessa hipótese, acrescenta-se à discussão, o estranhamento na língua como elemento organizador que permite deslocar, na relação Língua Materna /Língua Estrangeira, a questão da alteridade.

Língua Estrangeira perde o estatuto de alheia, porque diferente, para ser questionada a partir do estranhamento próprio à Língua Materna. Se a hipótese sobre o inconsciente foi construída porque Freud ouviu falhas, hesitações e esquecimentos como manifestações de um funcionamento desconhecido pelo Eu/Ego, devemos destacar, sobretudo, que Freud não concebe seus “aparelhos” de memória e de linguagem senão enquanto sistemas de escrita.

Isto não é sem importância para este trabalho, uma vez que éessa concepção de linguagem comosistema de escrita/leitura que nos fornece os elementos para questionar a condição de familiaridade da língua materna e a de estrangeiridade da língua estrangeira em Freud e as consequências disto para seu pensamento conceitual ou suas definições clínicas.

Vejam este fragmento, “O trovão, a mente perfeita”, desenhado sobre um papiro pertencente atualmente a Biblioteca Nag Hammadi, que se estima datado de 325 d.C. e escondido entre outros escritos em jarras de barro, por mais de 1.600 anos. Redescoberto nesta cidade do Alto Egito, em 1945. A Segunda Grande Guerra desenterrou o recalcado histórico e deu-o à luz. É um monumento literário do gnosticismo.[2] Este poema é usado como epígrafe por Toni Morrison no livro Jazz.

Texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Eu sou o nome do som/ E o som do nome/. Eu sou o signo da letra/ e a designação da divisão.

Com base em interpretações heterodoxas e relatos alternativos do Pentateuco, os cinco rolos da Torá hebraica e o Velho Evangelho cristão, os gnósticos fizeram afirmações considerando que o universo material (cosmo) teria sido criado por uma emanação imperfeita de um Deus supremo demiurgo. A estes demiurgos cabia a tarefa de aprisionar a centelha divina (espírito) no corpo humano. Esta centelha divina poderia, então, ser liberta através da gnose: que seria um conhecimento intuitivo (nem lógico ou dedutivo) sobre o espírito e a natureza da realidade. Demiurgo, portanto, indicaria um artesão designado pelo divino para intervir na natureza humana, como guardião da alma no mundo; e que, sem criar de fato o universo, daria forma a uma matéria desorganizada, imitando as potências eternas, numa tarefa de semblante de saber e poder.

Sem muita dificuldade, podemos considerar o trecho acima uma apresentação metafórica, do processo de cura na clínica.

Desses tantos saberes oprimidos, recalcados e, no entanto, ativos, reencontramos como pista uma espécie de testemunho sobre o ato de transmissão do próprio Freud, ao escrever o prefácio à tradução hebraica de Totem e tabu (1930). Pergunta-se, “Mas o que ainda há de judeu em ti…?”, ao que responderia: “Muita coisa ainda, provavelmente o principal”. Mas, parece também que, mesmo naquele momento, compreende que não poderia formular essa característica essencial com palavras claras e, talvez por isso, projete a decifração de sua obra e do desejo feminino ao futuro: “Mais tarde certamente haverá uma ocasião em que ela será acessível à compreensão científica”. Como parte do enigma de saber sobre o desejo feminino, que ele lega como tarefa às mulheres como eu e aos que pensam a psicanálise teoricamente, ousei ensaiar hipóteses neste conjunto de conjecturas e acasos que lhes apresento.

Referências

MEZAN, R. Figuras da teoria psicanalítica. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo n. 23, v. 4, p. 57-77, Edusp/Escuta, 1989.

FUNÇÃO SIMBÓLICA. Infopédia. [verbete]. Porto: Porto Editora. [consulta 2021-10-23 15:25:54].

Disponível em: https://www.infopedia.pt/$funcao-simbolica. Acesso em: 23 out. 2021.

MORAES, Maria Rita Salzano. Materna/estrangeira: o que Freud fez da língua. Campinas, SP: Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, 1999. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ tla/article/view/8639333. Acesso em: 23 out. 2021.


[1] O termo abjad              é             um          acrônimo              derivado das         quatro    primeiras              letras      –             Âlif,           Bâ,          Jîm,        Dâl         –             de           uma       antiga     sequenciação      do           alfabeto árabe,    denominada           ordem abjadi.       Desse    sistema fazem    parte      as            escritas  aramaica,             siríaca,   ugarítica,               árabe           e             hebraica.               Esse       alfabeto é             traçado  da           direita    para       a             esquerda,           horizonte               oposto   ao           das         línguas  latinas    que         migram da           esquerda              para       a           direita.   Apesar   de           ser          denominado        de           “alfabeto”,             na           verdade a              escrita    abjad,           tem         uma        peculiaridade:      cada       símbolo representa            uma       consoante.           A             representação           das         vogais    é             feita        através  de           diacríticos             colocados             sobre     ou           sob         as           letras.     Para       quase    todos      os abjads              conhecidos           parece   igualmente           redundante           a           denotação            de           vogais.

[2]                         Como     gnósticos              são         definidos               os           sábios    ou           estudiosos            que           constituem            um          conjunto de           correntes               filosófico-religiosas            sincréticas            oriundas da           região    do           Mediterrâneo,      durante  os           séculos  I               e             II              d.C.        Estes      saberes,           associados           aos         cultos     dos         mistérios               greco-romanos   pagãos, acabaram             tornando-se           sinônimo               de           mistério propriamente       dito.        O             conjunto de           reflexões               manuscritas           em          aramaico              é             alicerçado            em          interpretações     de           relatos   bíblicos  e           apócrifos, e costurados por um viés filosófico              platônico,              ao           qual        foram     acrescidos,           ainda,           os           tais          cultos     greco-romanos   e             orientais.               Embora mesclado             ao           judaísmo           das         escrituras              e             ao           cristianismo          primitivo dos         primeiros              séculos  desta      era,           acabou  condenado           como     um          saber     herético, após       um          período  de           prestígio nas           comunidades       de           origem.