IMUNIDADES REAIS E SIMBÓLICAS: ENSAIO SOBRE DESCONSTRUÇÃO E ALTERIDADE

Victor Maia

PREÂMBULO: A PROMESSA

A Filosofia e a Psicanálise, bem como as Ciências Humanas de um modo geral, acompanham atentas uma reorganização generalizada do sentido, que extrapola a crise sanitária que se abateu sobre o mundo, e que ganha novos contornos com a pandemia. Para a prática psicanalítica, por exemplo, o isolamento social forçou uma reflexão profunda e fundamental sobre seu próprio fazer e sobre seus desdobramentos. A moldura que serve de suporte ao processo analítico foi abruptamente alterada, exigindo de seus partícipes novos modos de agenciamento das forças que atravessam a clínica. Para além do conteúdo das angústias e das questões trazidas pelos analisandos – já por si mesmas complexas –, lidamos também com uma radical transformação dos nossos códigos de relação com o outro.

Psicanalistas e analisandos vislumbram um achatamento dos horizontes de compreensão do mundo, ao mesmo tempo que tentam lançar mão de outras formas de produção de presença, nomeadamente com os atendimentos on-line. Ou seja, os efeitos da pandemia nos obrigam, de uma só vez, a repensar certos elementos do processo analítico, até então relativamente estáveis, como o tête-à-tête entre analista e analisando, por exemplo; e a hiperbólica intensidade das questões que se colocam na experiência do desterro doméstico, da condição de
quase clandestinidade na qual a quarentena nos fez mergulhar.

Nas relações entre o “eu” e seu outro, vê-se a assunção de questões e aporias que dão conta de uma conformação alérgica e violenta do contato. Porque a dinâmica da relação com o outro é agora intensificada em uma dimensão ameaçadora e estranha, a ser evitada. O outro representa uma ameaça, e o “eu” se vê hiperbolicamente imerso no desamparo e lançado à solidão. O outro é aquele que traz a possibilidade da antecipação da morte do “eu”, mesmo quando este outro é o familiar ou o próximo. O conhecido e familiar ganha agora os contornos de uma estranheza da qual o “eu” deve se resguardar. Ora, uma tal dinâmica reorienta potencialmente os nossos próprios modos de ser no mundo. Principalmente no que se refere ao único campo onde é possível “ser” propriamente, isto é, o campo das relações humanas.

Trata-se aí de uma relação sem contato, de uma relação na qual o “eu” busca imunidades tanto reais quanto simbólicas, uma vez que deva resguardar sua pureza da contaminação que vem do outro. Essa pretensão à imunidade, como pretendo mostrar, desencadeia no campo simbólico uma reação autoimune, que põe em xeque a própria relação com a alteridade. O “eu” é aí um “eu” separado – eis outro nome para o sagrado –, incólume, são, salvo, reativo ao outro. Que é também dizer que se trata de um “eu” imerso numa lógica violenta em relação ao outro, uma violência originária do próprio dizer “eu”.

A questão norteadora aqui será, então, aquela da possível relação entre o “eu” e o outro. Apoiando-me no idioma filosófico da desconstrução – que teve na figura do filósofo franco-argelino Jacques Derrida a sua mais importante expressão –, apostarei numa discussão que saliente os desafios, as aporias, as impossibilidades e as incondicionalidades que perfazem nossa relação com o outro. A partir disso, falarei de um outro que é a própria condição de possibilidade do “eu”, de um outro como a única e fundamental possibilidade de alguma vez podermos dizer “eu”.

Interessa-me a desconstrução aqui, em primeiro lugar, pelas possibilidades que esse pensamento nos abriu a partir dos anos 1960. Um termo hoje assimilado pelo cotidiano, usado tanto em movimentos identitários quanto nas mesas de bar, mas que revelou grandes respiros teóricos para se pensar além das sedimentações metafísicas e essencialistas, com base nas quais a tradição do pensamento estruturou temas importantes, como “eu”, o mesmo, a responsabilidade, a justiça, entre outros. Interessa, portanto, me servir aqui desse idioma filosófico, tão importante para as microrrevoluções identitárias verificadas nos últimos 60 anos, mas não como um conjunto de verdades cristalizadas ou de conceitos fechados e autorreferentes. Trata-se, sobretudo, de buscar entrecruzamentos incontornáveis entre campos de saber pretensamente autônomos – aqui, a filosofia e a psicanálise. Trata-se, em outras palavras, de perceber essas questões, ditas filosóficas e psicanalíticas, nas encruzilhadas onde os saberes encontram seu destino e onde não são pertencentes exclusivamente a uma ou outra ciência.

Ao ir além da consideração fenomenológica do sujeito, a desconstrução destaca a incondicionalidade de princípio a partir da qual se torna possível pensar uma alteridade irredutível, de total abertura ao outro. A noção derridiana de différance tem aí um papel importante, pois se refere à diferencialidade da diferença. Trata-se de pensar a diferença não mais por meio de sua remissão à identidade, como tradicionalmente se fez, mas de pensar a diferença pela diferença, na estranheza e imprevisibilidade do outro.

Considerando, pois, a injunção verificada na impossibilidade de circunscrever e de se apropriar rapidamente do pensamento da desconstrução, de dominar seus contornos fugidios e avessos a qualquer tipo de acomodação ontológica; e, ao mesmo tempo, no inaudito apelo ao se deixar timpanizar pelo timbre desse idioma filosófico, destaco a necessidade de se falar de certa im-possibilidade, segundo o exame das aporias e das injunções não mais como pontos de chegada, e sim como pontos de partida para as nossas reflexões. Ou seja, a verificação de uma impossibilidade da relação com a alteridade, que seja absolutamente justa e digna do nome, tem aqui os contornos de uma abertura dos próprios horizontes de possibilidades da relação com outrem.

Além disso, ressalto que o registro discursivo que antecede e permite a relação entre o mesmo e o outro perfaz uma estrutura de promessa que talha todo endereçamento ao outro. Essa promessa nos direciona imediatamente para a cena da responsabilidade, pois não se é responsável pelo outro senão respondendo de pronto a esse outro. Mas já essa responsabilidade prediz a culpa intrínseca a toda responsabilidade. Que é dizer que nunca se é suficientemente responsável, sendo, por conseguinte, a culpa e o dever de pedir perdão, originários.

Assim, diante da imensa complexidade, diante das dificuldades de uma explanação apropriadora, ou mesmo de um exame exaustivo e definitivo desse tema, não farei aqui senão ensaiar alguns avizinhamentos entre noções como eu, outro e imunidade. Uma escrita desviante de seu objetivo, um envio ao outro que perjura de antemão aquilo que se propõe. Uma carta que, contrariando Lacan, não chega nunca ao seu destino. Pelo que haveria de se pedir perdão antecipadamente, perdão de antemão pelo trágico destino de uma promessa que, à partida,
não se poderá cumprir.

Nesse sentido, importa aqui perceber uma noção de alteridade alargada e que, nas suas impossibilidades e aporias, é a própria condição de uma relação não violenta com o outro. Da imunidade real, a qual almejamos nesses tempos sombrios, às imunidades simbólicas, ao fato da incontornável contaminação advinda do outro, que é a própria condição para a constituição do sujeito. Eis os nossos desafios aqui.

DOIS LANCES DO JOGO: DIFERENÇAS E RASTROS

“Die Welt ist fort,/ ich muss dich tragen”, dirão esses dois versos do famoso poema de Paul Celan. “O mundo acabou,/ eu tenho de te portar.” A segunda estrofe nos dá toda a carga de um “eu” que é arquioriginariamente responsável pelo outro, por este infinitamente outro que, ao mesmo tempo, eu devo portar. Como Derrida observa, trata-se aí de um “eu ético” absolutamente obrigado à exterioridade de outrem, que deve ser carregado, portado, su-portado. Em Béliers, o filósofo da desconstrução destaca uma relação entre esse eu e outrem para além do ser e da fenomenalidade, isto é, para além do mundo (Die Welt ist fort). Jogando com certo fort-da, caro à tradição freudiana, Derrida (2003, p.68) nos diz que:

Quando o mundo não existe mais, quando ele está em vias de não estar mais aqui, mas lá além, quando ele não está mais próximo, quando ele não está mais aqui (da) mas lá além (fort), quando ele já nem sequer está mais lá além (da) mas partiu para longe (fort), talvez infinitamente inacessível, então eu tenho de te portar [porter] ou de te carregar, a ti sozinho, a ti sozinho em mim ou sobre mim sozinho.

É preciso ressaltar que essa obrigação, essa responsabilidade de portar o outro, de bem portar e carregar o outro, não tem aqui a figura psicanalítica da interiorização e do luto. A relação com o (ao) outro não se estabelece pela interiorização ou pela apropriação do outro pelo eu. Ainda que “em mim”, ainda que bem guardado e bem portado, este outro deve permanecer aquilo que é, outro. Esse portar bem o outro é precisamente um “inclinarse para a inapropriabilidade infinita do outro, ao encontro da sua transcendência absoluta mesmo dentro de mim, quer dizer, em mim fora de mim” (DERRIDA, 2003, p. 77). Nesse sentido, será então na estranheza da alteridade de outrem que esse “eu” se estabelece como um “eu ético”. Sem apropriação, sem interiorização ou sem assimilação, devo carregar o outro em mim. A exterioridade absoluta – secreta e separada, ab-solus – desse outrem que porto e carrego é, ao mesmo tempo, a estranha in-condição desse “eu”. Como salienta o filósofo acerca disso, “eu, eu não sou eu, não posso ser, não devo ser senão a partir deste estranho porte deslocado do infinitamente outro em mim” (idem).

Cabe ressaltar que este outro de que se fala aqui não é aquele Outro ao qual nos remete Jacques Lacan, seja no sentido do registro simbólico (LACAN, 1966a), seja no sentido do registro imaginário (LACAN, 1966b). Em contrapartida, embora para Freud haja uma polarização no campo psíquico entre o sujeito consigo mesmo e com o outro, segundo uma dialética permanente, o sujeito do discurso freudiano está ainda marcado por certa dualidade verificada entre o dentro e o fora que, para Derrida, permanece no registro de uma metafísica logocêntrica. E é justamente no descerramento do que Derrida designa a “clausura metafísica” que a desconstrução pode acontecer, evidenciando o registro aporético de toda origem e dando a pensar a contaminação da relação entre o dentro e o fora, ou a própria exterioridade do dentro. Para além de um simples regime de presença, pensa-se o “algures” [“ailleurs”[1]] “aqui” [“ici”]. Sem transcendência, e remarcando o ateísmo do pensamento de Derrida, é a partir do mundo que se tem acesso ao fora do mundo no mundo.

Com efeito, esse “ailleurs ici”, esse algures aqui, talvez uma das principais aporias que animam a desconstrução enquanto pensamento, é a própria relação entre a singularidade e a alteridade. Ele dá conta, como “não lugar”, da exterioridade ou do “fora”, e mesmo da alteridade absoluta, enquanto relação interrompida – todavia sem interrupção – com o outro. Trata-se, portanto, de uma exterioridade que carregamos em nós mesmos, e que é ao mesmo tempo a condição para a relação com outrem. Em sede derridiana, este ailleurs é mesmo o tempo e o espaço do acontecimento. Destacando um jogo de diferenças e rastros, a desconstrução põe à luz uma abertura que nos permite pensar uma alteridade absoluta, considerando o outro como um totalmente outro [tout autre], e não mais como uma determinação negativa do si. A partir de Emmanuel Levinas, mas para além dele, Derrida tenta pensar a lei de uma responsabilidade infinita do sujeito na sua relação ao/com o outro. Porque o sujeito é sempre responsável pelo outro. Mas trata-se aqui de uma infinita responsabilidade devida a outrem.

Esta différance que, na economia do idioma derridiano resiste à tradução, é legível, mas não pode ser ouvida. Embora a semelhança fônica permaneça, a alteridade gráfica do “a” mudo não se deixa apropriar pela presença a si da fala, ela não é, neste contexto, presentificável. A inscrição tumular dessa letra que não se ouve marca o rastro como apagamento. Noutras palavras, a différance não é nada. Não se regulando, pois, segundo a ordem de um ente-presente, ela permanece marcada por uma nuance inencontrável e não apropriável, o inencontrável lugar do lugar, onde a relação ao outro pode acontecer ou ter lugar na forma do acontecimento.

Uma vez que se consiga compreender essa articulação entre os motivos da différance e do rastro, torna-se pertinente sublinhar a inscrição da différance no mesmo como rastro do outro, até mesmo como rastro do rastro do outro. Patenteia-se aí a abertura que permite um pensamento da alteridade que faz jus à singularidade de outrem, tomando-o como um outro, como um absolutamente outro. A estrutura aporética e indecidível da linguagem submete o sujeito, que vê então a sua identidade a si perturbada, a certa passividade que faz com que falar não seja senão um co-responder ao outro. Na sua finitude e mortalidade, o sujeito encontra-se sujeito ao outro. Ele vem a si na medida em que se relaciona com o outro, na medida em que co-responde ao outro. Falar é então já sempre um apelo ao outro, traduzindo a marca deste último em nós mesmos. A palavra como rastro remarca a própria condição de responsabilidade com o/pelo outro. Nesse sentido, a relação ao outro é sempre uma relação marcada por um sim originário, que se abre ao por vir e a uma estrutura de repetição na forma disso que “vem” (DERRIDA, 1986, p. 21 et seq.).

De notar ainda que esse registro discursivo que antecede e permite a relação entre o mesmo e o outro é também uma estrutura de promessa que habita todo endereçamento à alteridade. Tal promessa nos precipita na cena da responsabilidade, uma vez que somos responsáveis pelo outro respondendo ao outro. E, de uma vez que se é responsável, se é também culpado. Como Derrida (1999a, p. 77-78) observa, “a culpabilidade é inerente à responsabilidade, porque a responsabilidade é sempre desigual a si mesma: não se é nunca suficientemente responsável”. Ora, desde que há o contato entre duas singularidades, desde que há linguagem e endereçamento, há promessa, responsabilidade e, portanto, culpabilidade, perjúrio e necessidade de se pedir perdão.

O sujeito, ou o “eu” que nunca é idêntico a si mesmo, ao mesmo tempo institui e interdita a sua identidade na interiorização – que não tem a forma de uma assimilação, mas antes resguarda o outro como outro na melancolia do portá-lo (DERRIDA, 2003, p. 73-74) – mimética do outro. Ressalve-se, todavia, que não se trata de uma aniquilação da identidade, mas de evidenciar como o processo de constituição da identidade sempre falha na sua consumação. A identidade nunca é idêntica a si mesma, e não pode retornar a si senão no seu apelo ao outro como outro, no movimento da différance.

A singularidade deste “eu” destituído de toda forma fixa e autorreferente de identidade estrutura-se sempre como différance e desvio em direção ao outro. Seria preciso, pois, falar de uma identidade que se talha segundo uma singularidade plural, na qual o “eu” somente pode ser si mesmo portando o outro – sem, todavia, assimilá-lo – como outro em si, um eu que só pode dizer-se sob a rasura do “nós”. Desse modo, a instituição da identidade não pode ter lugar na forma de um solipsismo ou do egoísmo, na indiferença cartesiana à alteridade de outrem. Tal é também o modo como se estrutura a palavra na sua indecidibilidade e ausência de origem determinada. A identidade do sujeito, nesse sentido, não tem lugar senão como a marca do outro na língua como promessa responsável. A possibilidade mesma da relação ao outro, portanto, a possibilidade da própria instituição do ético-político-jurídico, só se efetiva a partir do registro aporético e indecidível da palavra como promessa e vinda do outro, sem que haja aí qualquer horizonte de espera apropriável ou antecipável.

Exposta sempre àquilo que tem lugar na forma de um acontecimento, que não pode ser previsto nem calculado, a desconstrução é, também ela, infectada pela lógica da autoimunidade, pela lógica da autoimunidade do indemne. Tal lógica interrompe sempre a pretensão do puro, do incólume, do salvo, do íntegro, do autêntico, do separado, do próprio, do soberano. No contexto da democracia, para ficarmos num exemplo próximo do momento pelo qual passamos, a autoimunidade corresponde, nesse sentido, ao processo autodestrutivo, quase suicida, de reação ao que vem na forma do desconhecido, do estrangeiro, do estranho, da ameaça iminente do heterogêneo. A fatalidade do autoimune é, em outras palavras, uma reação à ex-apropriação do próprio, uma reação quase que natural à contaminação do outro, que não pode ser totalmente erradicada, mas meramente minimizada ou negociada.

EPÍLOGO: PARA ALÉM DO DESVIO

Os efeitos sociais e psíquicos da pandemia são sentidos no isolamento, de si e dos outros, mas também nas novas formas de relação com o mundo advindas desse acontecimento. Ao mesmo tempo que o mundo corre afoito à procura de uma imunidade dita real, de algo que impeça o novo vírus de circular por nossos corpos, vemos uma tentativa de imunização simbólica, relativa ao outro, à proximidade de outrem, ao familiar que se tornou, de algum modo, estranho.

Desviando-me momentânea e estrategicamente da questão das imunidades reais e simbólicas, tentei destacar o modo como o movimento da desconstrução encara a relação entre eu e outro, sem que essa perspectiva significasse a supressão do “eu” em prol do outro, como algumas leituras apressadas poderiam indicar. Vê-se aí, ao contrário, a configuração de um “sujeito” que não pode se dar senão em termos de relação. Ou seja, segundo a lógica de uma contaminação originária, vinda do outro, isto é, segundo uma hétero-auto-afecção anterior à própria possibilidade do sujeito. Trata-se mesmo de dizer que a individuação do “eu” é marcada pela ex-apropriação de si, pelo enlutamento originário que o solipsismo da metafísica tradicional terá relegado ao esquecimento.

Em sua originariedade absoluta, o luto não espera. Chega antes de nós mesmos, antes da possibilidade desse “nós”. Ele é justamente a experiência da identificação do “eu” como a experiência finita da não identidade a si. A experiência do luto é, nesse sentido, a impossível experiência do acesso à alteridade absoluta de outrem. Retomando, pois, um pouco daquilo de que já terá tratado em Béliers, no que se refere ao processo de interiorização do outro sem esquecimento nem assimilação, Derrida nos dá a ler no segundo volume de seu Seminário sobre a besta e o soberano a seguinte observação:

Digo “relação a outrem enquanto trabalho do luto”, pois o luto não espera a morte, ele é a essência mesma da experiência do outro como outro, de uma alteridade inacessível e que não se pode senão perder amando-a – ou também a odiando. Estamos sempre enlutados pelo outro (DERRIDA, 2010).

Além disso, e contrário a qualquer pensamento de primazia do “eu” sobre outrem, acredito que o momento pelo qual passamos seja uma oportunidade de revigoramento da práxis psicanalítica. Porque a psicanálise deveria ser pensada como um saber sem-álibi. Um saber sem os álibis metafísicos, teológicos, morais e de soberania que, numa reação autoimune, poderiam corresponder às condições de sua própria dissolução histórica[2].  Um saber sem-álibi, em última instância, que, diante de um horizonte de antecipação do enfrentamento da morte e de nossa finitude no qual a pandemia nos coloca, nos permite pensar de outro modo o “eu”, o outro e a própria vida. Ou, ainda, reafirmar isso que excede a vida, como sobrevida.

A reafirmação da vida do vivente como sobrevida é uma articulação que, na desconstrução, vai além da clássica dualidade hierárquica entre vida e morte. Porque “somos estruturalmente sobreviventes, marcados pela estrutura do rastro, do testamento” (DERRIDA, 2005, p. 55). É, portanto, acerca de uma pulsão de vida que também seria preciso falar aqui. E isso, claro está, não sem jogar, interromper e problematizar a pulsão de morte que, de resto, estará relacionada com essa questão de uma ponta a outra. Pulsão de vida, sim, de uma vida que em sua estrutura testamentária, e de rastro, provém do outro. Porque, para me constituir como singularidade vivente, como um eu único, devo sempre acolher o outro em mim.

E isso não se dá sem dificuldades e sem injunções, pois esse eu vivente é também marcado por um caráter de autoimunidade[3]. Essa autoimunidade, que remarca aqui a indemnização constitutiva do vivente, corresponde a uma alavanca fundamental para se re-pensar a lógica do são, do salvo, do imaculado, do puro e do intacto. Ela nos remete mais uma vez ao questionamento da origem, em sua unicidade suposta.

Relevando a estrutura de autoimunidade dos viventes, observamos – de modo sub-reptício e enviesado, até mesmo insuficiente – que o eu vivente é marcado por uma estrutura autodestrutiva e suicidária, segundo a qual, no processo de reação a um corpus estranho, estrangeiro, ao outro que, desconhecido, porta também a
ameaça, pode ele mesmo aniquilar as suas próprias defesas. E essa fatalidade autodestrutiva da autoimunidade ressoa como que uma reação à alienação originária do próprio, uma autodelimitação desconstrutiva, como Derrida sugere para falar da democracia em Politiques de l’amitié (DERRIDA, 1994, p. 129). Não de uma delimitação com a figura de uma ideia reguladora, indefinidamente perfectível, ressalte-se, mas sim da delimitação que releva a urgência singular do aqui agora [ici maintenant].

Assim, a explanação ensaiada aqui sobre a relação entre o “eu” e a alteridade, pelo viés da desconstrução, tomou as formas de um grande desvio, no qual se pretendeu abordar o pensamento filosófico não como uma categoria estanque em relação à Psicanálise, mas antes como uma caixa de ferramentas para pensar as importantes questões ditas psicanalíticas. Do pensamento psicanalítico que será, talvez, o único a poder tomar essas questões sem os álibis metafísicos e teológicos aos quais sempre estiveram relacionados, que perpetuam uma violência ética na relação com o outro.

Errantes em seus destinos, os textos são, sobretudo, endereçamentos ao outro, ao desconhecido, ao não importa quem. Como endereçamento, o texto é também uma promessa que, por vezes, perjura e fracassa. Perdão!

REFERÊNCIAS

BIRMAN, J. Crueldade e psicanálise: uma leitura de Derrida sobre o saber sem álibi. Revista Natureza Humana, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 55-84, 2010.

DERRIDA, J. Parages. Paris: Galilée, 1986.

DERRIDA, J. Politiques de l’amitié. Paris: Galilée, 1994.

DERRIDA, J. Donner la mort. Paris: Galilée, 1999a.

DERRIDA, J. Béliers. Le dialogue ininterrompu: entre deux infinis, le poème. Paris: Galilée, 2003.

DERRIDA, J. Apprendre à vivre enfin. Paris: Galilée, 2005.

DERRIDA, J. Séminaire La bête et le souverain. v. II. Paris: Galilée, 2010.

LACAN, J. Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse. 1953. In: Écrits. Paris: Éditions du Seuil, 1966a.

LACAN, J. Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je. 1949. In: Écrits. Paris: Éditions du Seuil, 1966b.

VICTOR MAIA

Psicanalista, membro da SPID e pós-doutor em Filosofia Contemporânea pela UFRJ.

E-mail: victormaiasoares@gmail.com


[1] Cf. D’ailleurs – Derrida, filme de Safaa Fathy, Gloria Films, La sept arte, 2000.

[2] Cf. Derrida (2000, p. 23-25). Ver também Birman (2010, p. 55-84).

[3] As considerações sobre as noções de pulsão de vida e de pulsão de morte no pensamento de Derrida alcançam dimensões que extrapolam os objetivos deste trabalho. Trata-se mesmo aí de gizar o movimento de desconstrução em curso dessas duas noções. Para
uma abordagem dessas questões, remeto aqui, nomeadamente, a Derrida (2000; 1980).