DAR VOZ AO ESPANTO

Cynthia Azevedo

1º de junho de 2020 e meu 78º dia de confinamento. Lá fora, a pandemia aproxima-se do pico no Brasil. Desde o início, em março, todos os dias busco, estarrecida, refletir sobre o que está acontecendo. Em mim, nos outros, no país, no mundo. Uma enxurrada de notícias, informações e interpretações de todos os cantos. A pandemia vista em gráficos frios, de um lado, e em rostos cheios de dor, de outro. A preocupação rondando todos sem exceção, quais sejam essas preocupações. Com as perdas, a morte – a própria e a dos outros, esses outros, próximos, ou do mundo todo – as perdas econômicas, as perdas financeiras, a perda do emprego. Para completar: um cenário político disputando espaço nas manchetes pela inépcia e indiferença dos atores.

Rapidamente, a tecnologia possibilitou que se arranjasse dentro de casa a maior parte dos negócios, trabalhos, aulas, a malhação, o lazer e atividades para a ansiedade, como meditação e ioga. A comunicação capenga dava para o gasto. Novidade para uns, mas não para todos, cada um se ajeitou aos aplicativos, e um mês depois já não se falava tanto no “como vai ser”. E o “o que vai ser” foi ficando ali dentro de cada um para pensar depois. O espanto engolido e mal digerido.

Para escrever este texto, volto à primeira semana da quarentena. Me lembro de arrumar a bolsa para o dia seguinte, como de hábito. Consultar o aplicativo do tempo, a agenda. Escolher a roupa que ia vestir. Mas nada disso foi preciso ao acordar. Ninguém sairia mais de casa. Nos primeiros dias, era lidar com o espanto causado pelo inesperado. Perplexidade diante da vida – e da(s) morte(s). Sim, fomos atingidos. Não pelo tão temido ataque nuclear, mas por outra força destrutiva, um vírus. O isolamento é imposto.

Comecei a pensar se, apesar de todas as feiuras do momento, era possível lançar um olhar lírico sobre mais essa “página infeliz da nossa história”, para lembrar Chico Buarque. Se conseguiria escrever poesia. Porque foi sempre ela, a poesia, que me salvou, toda vez que dava um nó na garganta, que a boca não sabia dizer o que os olhos e o coração viam. Toda vez que não encontrava palavras. Nasceram daí tantos poemas ruminados longamente. Porque foi sempre a poesia que metabolizou os trancos. Mas me sinto “embotada de ‘notícia’ e lágrima”, parafraseando o mesmo Chico. E, de mim, nem um só verso sai ou se completa.

A refletir sobre todos esses movimentos e desafios que a pandemia nos apresentou, lembro o garboso alferes, Jacobina, personagem do conto O Espelho, de Machado de Assis, que vai para o “sítio escuso e solitário” de sua tia. Passadas umas semanas, por obra do destino, um dia se vê sozinho na casa com os escravos da fazenda. Nos primeiros dias de “cárcere”, o alferes sente uma opressão. Eis que certa manhã, Jacobina acorda completamente só com os poucos animais. Os escravos tinham fugido todos. Não sentiu medo, mas ficou perplexo. O tempo passava. O relógio da sala batendo feria-lhe “a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade”. Os dias corriam, o nervosismo e o desespero aumentavam. Fazia ginástica, beliscava a perna, tentava escrever, ia até a estrada. Quando dormia, sonhava que estava fardado. Curiosamente, desde que ficara só, não se olhara nem uma vez no espelho e, quando o faz, o que vê é uma figura difusa, “sombra de sombra”. Sozinho, sem o olhar do outro, Jacobina sente medo. Decide então vestir a farda de alferes. Ao se olhar novamente, o espelho reproduz “a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes […] Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo”. Depois disso, tudo ganha vida e assim ele consegue suportar a solidão.

Esse conto, que tem como subtítulo “Esboço de uma Nova Teoria da Alma Humana”, me fez pensar sobre como, na solidão, Jacobina vai percebendo uma alma “de dentro” e uma alma “de fora”, e como sua imagem foi se dissolvendo a ponto de ele se desorganizar, sentir angústia, medo e querer “sair correndo”. Essa dissolução da própria imagem podendo ser interpretada como um rompimento da onipotência. Somente ao dar contornos a sua imagem vestindo novamente a farda e criando uma rotina, ele é capaz de permanecer isolado no sítio por mais um tempo. O personagem vai tomando consciência de si mesmo, de sua identidade. Um pouco como alguns se sentiram, e alguns ainda se sentem, ainda que cada um de forma muito particular, nessa experiência inédita de recolhimento imposta pela pandemia do COVID-19.

Embora o conto já tenha suscitado várias associações e interpretações e inspirado muitos estudos, como sobre a construção da imagem e o narcisismo a partir das duas almas que se apresentam na história – “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro…”, foi de fato pelo modo como o personagem, em seu desespero para não se perder de todo e “ir embora”, reconhece e nomeia o espanto, que ele me remeteu a esta nossa experiência atual. Enviando a história de Jacobina para uma lista de pessoas durante a quarentena – um sopro de literatura em nossos dias estranhos –, algumas ponderaram e consideraram os vários momentos vividos por Jacobina para se identificar, se reorganizar, desatar certos nós – na garganta, nos músculos, nas emoções, e por que não, na própria história.

Aliás, foram experiências como essa, por meio da biblioterapia[1], ou seja, o cuidado pela literatura, que me convidam sempre a transbordar do dito para o não dito e o que se quer dito, que acabaram por me despertar o interesse maior pela psicanálise.

No improviso da telinha do computador ou do celular, em casa, chega o momento de atender. Não há muita surpresa com a tecnologia, pois já trabalho assim há muitos anos e, por essa via, se deram os primeiros atendimentos. Do outro lado dessa tela, olhos também embotados de notícia e lágrima esperam o momento em que a conexão se estabelece – em todos os sentidos, tecnológicos e humanos. A bem dizer, mais humanos que tecnológicos. Porque nem as falhas de sinal da internet são capazes de impedir que essa conexão se dê quando o que se quer é que a sessão aconteça. Ponho de lado tudo que se passa em mim. Paro. Ouço. Ouvidos à flor da pele, atenta à “alma que olha de dentro para fora”, tento captar cada mínima nuance de suas vozes, e o pouco das expressões faciais; afinal, é só o que vejo: uma face nem sempre bem-definida. Isto é tudo que tenho a oferecer: uma modalidade de escuta empática, plena, como a que aprendi a receber em minha análise pessoal nesses tantos anos, e um cuidado com o outro.

À medida que inicio os atendimentos e escuto cada um, sinto que vou descobrindo o que fazer nas sessões aparentemente improváveis de se dar: a poesia. Sim, ela mesma. Se a poesia não pôde se realizar por sua escritura, encontro uma possibilidade do fazer poético em cada sessão, para lidar com o espanto que atordoou a todos, cada um de um jeito muito singular e específico, e suas diversas perdas. Pelo poder de inventar palavras e, com essas novas palavras, novos destinos para as angústias. Convidando cada um a abandonar-se na própria linguagem, a usar de forma desregrada as palavras (como ilustra Alberto Pucheu em “A Escrita da Admiração”), assim como ideias e associações, e a desatar os nós que vamos dando.

As sessões se alongam. O tempo parece não caber naquela pequena janela. Observo que o repertório de cada um não consegue quase abarcar o que está sendo vivido. O que é escutado neste cenário pandêmico às vezes precisa ser lido com um certo distanciamento, tantas são as variáveis que entraram em jogo para amplificar ou relativizar as percepções. E noto um certo ritmo, o prefixo “des” operando de forma latente. Desinfecção. Descontaminação. Desconexão. Desinformação Desorganização. Desânimo. Desesperança. E tantos outros “des”, ora negando ou privando, ora invertendo um estado de coisas, em si e fora de si. Uns chegam para a sessão temendo a(s) ameaça(s) de fora. Outros temendo a(s) ameaça(s) de dentro. O desamparo – a falta de escora, de refúgio – se manifestando de tantas maneiras diferentes.

Imaginar, com os analisandos, formas de expressar o espanto, de buscar uma linguagem correspondente para convertê-lo em algo criador e criativo, cada qual com sua singularidade, tem se mostrado uma tentativa de recuperação do material poético perdido, fugido com tudo o mais que se foi em tempos de pandemia e isolamento. De suprimir o valor negativo do “des” no dia a dia para encontrar sua ênfase positiva, como em desfazer os nós. De lidar com a questão da própria imagem, que alguns percebem como evanescendo, em uma vida que deixou de ser e que não se sabe quando nem como nem o que voltará a ser no fim disso tudo. De interiorizar a alma exterior. Enfim, de dar voz, e vez, ao espanto maior que nos trouxe até hoje e aos espantos de cada dia, que sempre hão de existir.

REFERÊNCIAS

ASSIS, M. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II.

PUCHEU, Alberto (org.). Poesia e filosofia – poetas-filósofos em atuação no Brasil. Belo Horizonte: Moinhos, 2018.

CYNTHIA AZEVEDO

Professora, editora de livros, biblioterapeuta, membro associado da SPID.

E-mail: cynthia.azevedo@gmail.com


[1] Biblioterapia, em termos gerais, é uma prática em que a literatura é utilizada para fins terapêuticos, ajudando as pessoas a lidarem com suas questões de acordo com o momento que estão vivendo.