PANDEMIA E PRÁTICA PSICANALÍTICA

André Avelar

Exercer a prática psicanalítica neste período turbulento de pandemia é difícil e desafiador. Ao mesmo tempo, é uma oportunidade de ampliar minha percepção sobre o acontecimento traumático em curso, assim como compreender melhor as repercussões dele sobre a subjetividade, tanto no âmbito da singularidade, do caso a caso, como numa perspectiva mais ampla.

Antes, porém, de entrar na investigação dos impactos da pandemia sobre o psiquismo, cabe caracterizar a hipótese na qual estou me apoiando para dar início a esta investigação. Valho-me da minha formulação de ego-rede para pensar a subjetividade contemporânea. De modo, bastante sintético, minha hipótese de ego -rede pode ser caracterizada como um modelo de constituição egoica que parte de minha interpretação da concepção ferencziana de introjeção (FERENCZI, 1992). Entendo que esse conceito nos permite pensar uma rede, uma malha, cuja relação com os objetos tem um aspecto eminentemente erótico (AVELAR, 2016), que é determinante para sua ampliação e expansão. Nesse sentido, há uma problematização da dialética entre o ego e o mundo objetal, uma vez que o primeiro passa a se reconfigurar – se ampliar ou se contrair – em função de seu encontro com o segundo.

Essa acepção do ego como rede é de grande importância para articularmos o ego com a temática contemporânea da virtualidade. Pensar a virtualidade na sociedade contemporânea implica pensar sobre a questão da relação do psiquismo com a tecnologia e – principalmente – com as relações em rede que se efetivaram a partir daí. Nossa existência não se dá hoje apenas no plano presencial, mas no plano virtual, com toda a complexidade que essa existência virtual comporta. Se, como já afirmara Freud (1974), o ego é a projeção sobre uma superfície corporal, a nova superfície sobre a qual o ego se projeta é exatamente a virtualidade. Penso esse ego a partir da característica descrita por Ferenczi como ‘diluição’ (FERENCZI, 1992). Esse ‘espalhamento’ é um dos modos de expressão do psiquismo na atualidade.

E, no momento de pandemia, em que as relações ‘presenciais’ se viram ameaçadas, novas possibilidades subjetivas se darão exclusivamente no plano da virtualidade. E o analista, a trabalhar nessa ceara, se verá a exercer seu ofício exatamente nesse território. Em meu trabalho, vejo-me, certas vezes a transitar em um território semelhante aos dos filmes da ‘nouvelle vague’, em que as imagens sofrem uma movimentação irregular e atordoante, como Glauber Rocha preconizava no movimento do Cinema Novo. Lembro-me também dos filmes do manifesto do ‘dogma 95’[1], em que o balançar da câmera nos transportava a uma realidade nua e crua. Estávamos nos mexendo como o protagonista. São essas só ilustrações das nossas relações com nossos analisandos atualmente; o que, na verdade, não é algo que se inaugurou agora; quem já tinha experiências com análises ‘on-line’ provavelmente já viveu algo parecido: analisandos que fazem análise caminhando, em lugares públicos, etc. Ou mesmo em lugares fechados, ficam a balançar seus celulares; estes passam a ser expressões de seus humores.

Por isso, quero pensar aqui que uma análise que se dá exclusivamente no terreno do virtual é atravessada por determinadas condições que são específicas desse terreno. Com isso, quero pensar sobre a especificidade do virtual (circunscrito aqui às relações em rede), de modo a não o considerar um obstáculo como outro qualquer à prática psicanalítica.

Um dos operadores clínicos fundamentais para pensar a prática clínica na virtualidade é a noção de ‘reverie’ (BION, 1998) como um modo de porosidade, de abertura à experiência psicanalítica. Uma das melhores definições que encontrei a respeito de tal ideia está presente na descrição de Ogden:

A reverie é uma bússola emocional com a qual eu conto intensamente (mas que não posso claramente interpretar) para me orientar na situação analítica. Paradoxalmente, enquanto ela é crucial para minha habilidade de ser analista, é ao mesmo tempo a dimensão da experiência analítica que é sentida naquele momento como a menos merecedora de escrutínio analítico. O tumulto emocional associado à reverie é usualmente vivenciado como se originalmente, senão inteiramente, refletisse o modo pelo qual não se está sendo analista naquele momento (OGDEN, 2013, p. 149-150).

Sobre ela, comenta Green (2017, p. 316): “(…) a palavra ‘reverie’ designa uma atividade do espírito sem objetivo preciso, sem rigor metódico, como uma rolha que se deixa levar ao sabor das águas sob a influência das correntes que animam o mar”. E acrescenta:

(…) irei situar a capacidade de reverie na ‘penumbra de associações’ da associação livre, isto é, eu a considero, na sessão, como uma réplica ou um analogon da associação livre – naquilo que esta última comporta, para aqueles que a ela se entregam, de obscuro e enigmático. Da mesma forma considero a associação livre como réplica ou analogon do sonho e de seus processos primários (idem, p. 15).

Mais à frente, a respeito da importância de Bion, enquanto autor do conceito de reverie: “(…) A originalidade da posição de Bion é considerar a reverie como suporte do amor (ou do ódio) da mãe na sua relação com a criança” (idem, p. 318) E, completa assinalando: “(…) Bion é movido por reveries em relação a seu paciente adulto, que ele funda a hipótese causal de que a relação mãe-criança é capaz de comportar tal reverie análoga ao que ocorre na análise” (idem, p. 318).

Os acontecimentos vividos a partir da experiência da reverie são sentidos de modo paradoxal pelo analista, como se fossem atravessamentos que o levariam a se sentir ‘não sendo analista’, uma vez que aludem a experiências que são sentidas pela via da estranheza: uma distração, um adormecer, um assustar-se, um angustiar-se; trata-se de acontecimentos que são, segundo Ogden, vividos como ‘desvios de função’.

Cabe agora articular a reverie com a ideia bioniana descrita como a capacidade de pensar (BION, 1988) que decorre da diferenciação entre o eu e mundo objetal, mais particularmente no que se refere às angústias primitivas relativas ao bebê e seu objeto materno. Distinta de uma faculdade intelectual, ligada ao raciocínio, esta relaciona-se com uma faculdade psíquica que decorre do êxito de uma experiência primitiva na constituição subjetiva. Tais ideias estão calcadas na mitologia bioniana da origem da vida psíquica, apoiado no conceito kleiniano de identificação projetiva (KLEIN, 1946). Se as angústias primitivas do bebê puderem ser expelidas por ele e absorvidas e devolvidas de modo suavizado pelo objeto materno, favorecerão o bom andamento do processo de constituição psíquica, que poderia ser pensado como um bom processo de identificação projetiva. Em suma: eu me constituo de modo saudável projetando minhas angústias e recebendo-as de volta suavizadas e – mais importante – dotadas de alguma significação pelo objeto materno. Eu me identifico pelas projeções e introjeções vividas nessa relação com a mãe ou com quem exerça tal função. Podemos ver a íntima relação do pensamento bioniano com a hipótese ferencziana já mencionada de introjeção (FERENCZI, 1992b). Mais do que isso, Bion faz uma clara alusão à concepção de Winnicott (1978) denominada como ‘preocupação materna primária’, ao pensar sobre as reveries maternas ante o sofrimento do bebê. Essa breve exposição busca apenas ser um terreno que visa tomar a reverie como a via para a constituição da capacidade de pensar. Quero dizer com isso que a capacidade de pensar decorre da possibilidade de o par mãe-bebê desenvolver funções que, na melhor das hipóteses, possam levar à produção da diferenciação eu-outro. Essa produção naturalmente é um processo; e caso seja bem-sucedido irá viabilizar a construção de recursos que – ao contrário da lógica paranoica – permitam ao sujeito abrigar bons e maus sentimentos dentro de si e diferenciar-se dos sentimentos projetados sobre si pelo outro.

Voltando ao processo de pensar, Bion (1988) salientará uma importante diferença, a saber: entre a existência do pensamento e a capacidade de pensar propriamente dita, ou seja, de manejo dos próprios pensamentos. Sobre esse ponto, comenta:

É conveniente encarar o processo de pensar como um processo que depende do resultado satisfatório de dois desenvolvimentos mentais básicos. O primeiro deles é o desenvolvimento dos pensamentos. Estes requerem um aparelho que deles se encarregue. O segundo desenvolvimento, consequentemente, é o desenvolvimento do aparelho que provisoriamente chamarei processo de pensar. Repetindo: o processo de pensar passa a existir para lidar com os pensamentos (p. 102).

E, mais adiante, assinala o ponto de partida para esta formulação teórica:

O modelo que proponho é de um bebê cuja expectativa de um seio se una a uma ‘realização’ de um não-seio disponível para satisfação. Essa união é vivida como um não-seio ou seio ‘ausente’, dentro dele. O passo seguinte depende da capacidade de o bebê tolerar frustração (idem, p. 103).

Mais adiante, vem problematizar esse circuito, exatamente a partir da impossibilidade de se tolerar frustração: “A incapacidade de tolerar frustração faz com que a balança se incline no sentido da fuga à frustração” (idem, p. 103). E, completa da seguinte forma:

O que deveria ser um pensamento – um produto da justaposição da preconcepção e a ‘realização’ negativa – torna-se um objeto mau, indistinguível de uma coisa-em-si, e que se presta apenas à evacuação. Consequentemente o desenvolvimento de um aparelho para pensar fica perturbado, e em vez disso, dá-se um desenvolvimento hipertrofiado do aparelho de identificação projetiva (idem, p. 103).

Bion irá propor a distinção entre os elementos α (alfa) e β (beta) para pensar a capacidade de pensar. Sobre a primeira, assinala:

(…) a consciência depende da função alfa. Supor que essa condição exista, constitui uma necessidade lógica, se admitirmos que o self seja capaz de estar consciente dele mesmo – no sentido de saber de si próprio a partir da experiência consigo mesmo. O malogro no estabelecimento de uma relação mãe/bebê em que seja possível a identificação projetiva normal impedirá, entretanto, o desenvolvimento de uma função alfa e, consequentemente, a diferenciação entre elementos conscientes e inconscientes (idem, p.106).

Green, a respeito do pensamento bioniano, assinala que os elementos β teriam que ser transformados em elementos α, exatamente pela função α. Destaca o papel da função materna nesse processo: “Nos casos normais, esta, através de sua capacidade de reverie, os restituiria à criança, realizando a conversão dos elementos β em α, que formam o tecido fundamental da atividade psíquica” (GREEN, 2017, p. 316-317).

E, um pouco mais à frente, acrescenta: “A contribuição da mãe doadora não somente de leite, mas de amor, de compreensão, de ternura, de segurança – qualidades propriamente psíquicas – é a fonte tradução de elementos β em elementos α, graças a sua função ligadora” (idem, p. 317).

Longe de querer aqui querer explorar o processo do desenvolvimento do psiquismo para esses autores, busco fazer um recorte com objetivos muito específicos. Estou fazendo esse breve percurso primeiramente para destacar que ambos os autores valorizam a experiência da frustração como fundamental à vida. Tanto Bion (1988), com sua articulação entre frustração e pensamento, como Green, com sua problemática do negativo (2010), valorizam sobremaneira a experiência da ausência entre o ego e o objeto para pensar a constituição psíquica. Green (1998), com sua ideia de pensamento clínico, irá esboçar um analista que precisa empenhar seu psiquismo para sonhar o inconsciente do analisando.

E, no que tange à experiência virtual, esta exige que o analista reveja e problematize sua prática e suas ferramentas clínicas. Considero, neste sentido, o operador clínico da reverie – um instrumento clínico fundamental para mim, uma vez que ele é uma radicalização da hipótese da livre associação. Mas este terá que sofrer também um esgarçamento perante a lógica da virtualidade. Seguem algumas breves ilustrações a respeito: sintome ‘arremessado’ de lugares em lugares quando passo de um atendimento para outro (quando, por exemplo, atendo os analisandos sem intervalo). Não é incomum o analisando se esqueça do horário de sessão, (mesmo que não tenha havido nenhuma alteração em seu dia e horário); assim, a sessão começa comumente de modo abrupto e caótico – e este caos passa a ser uma constante nesta relação. Em contrapartida, vejo também uma série de elementos que não integravam o setting tradicional a compor o setting virtual. Sinto, naturalmente, que o espaço análise, marcado pela privacidade, perde muito nesse sentido. Em contrapartida, vejo também que ele ganha em elementos até então inéditos: a sessão pode ocorrer na casa do analisando, ou até fora dela, no quintal, na garagem (dentro do carro, por exemplo). Assim como pode se dar também por sussurros, em decorrência da permanente ameaça à privacidade. Nesse caso, o analista faz um contato muito mais visceral com a realidade anteriormente narrada pelo analisando. São, de toda forma, múltiplas experiências, de difícil teorização. E, nesse sentido, entendo que a reverie é fundamental neste contexto, uma vez que se constitui como uma modalidade de atravessamento sintonizada com experiências não atreladas à representação. Todavia, conforme colocado, esta tem que ser ampliada para poder abarcar minimamente a complexidade do que temos vivido hoje na prática psicanalítica virtual.

Poderíamos pensar, conforme valorizado por Ferenczi (1992a), a existência de uma relação mais horizontal, porém marcada por parâmetros impensáveis para o contexto da época. Mas tal radicalização da horizontalidade não afeta em nada a sustentação de um sujeito suposto saber, na bela imagem construída por Lacan, a respeito da assimetria da experiência analítica (LACAN, 2010).

E, para concluir, no que diz respeito ao contexto social que nos atravessa, vivemos em uma sociedade marcada atualmente por uma lógica eminentemente persecutória; a ameaça real será bastante misturada aos medos internos no que diz respeito à vida coletiva. A questão do negacionismo – enquanto discurso de estado – torna ainda mais difícil a distinção entre as ameaças provenientes do mundo externo e as que se originam do mundo interno. E, nesse sentido, o desmentido, ideia tão importante a Ferenczi (1992c), é um conceito-chave para compreender nossa problemática da realidade brasileira: pior do que a pandemia é a ausência de recursos para sua significação. Essa é negada exatamente por um desmentido social, de cunho claramente paranoico.

Essa paranoia em nossa sociedade expressa-se pelo ódio à diferença; foi essa a origem, a meu ver, do caráter fascista da política que nos assola atualmente. Na lógica negacionista, toda ameaça é enxergada como uma espécie de ‘complô’ por parte do outro: no caso, a própria ciência é, hoje, o bode expiatório deste enredo. Como se sabe, toda lógica fascista se vale de um funcionamento paranoico para alcançar seu êxito. Dessa forma, a pandemia acrescida de um regime político cujo cerne é a paranoia produz uma dinâmica de consequências imprevisíveis. E o analista terá, naturalmente, uma função política, ao fomentar a capacidade de pensar do analisando tanto no microcosmo de sua realidade psíquica como no macrocosmo. Trata-se de uma posição ética ante uma ordem social que fomenta o ódio, configurando-se como um grande obstáculo à prática da reflexão.

REFERÊNCIAS

AVELAR, A. Uma reflexão sobre a reação terapêutica negativa. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 48, 2016.

BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). In: FERENCZI, S. Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992a. v. IV

FERENCZI, S. A introjeção (1909). In: FERENCZI, S. Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992b. v. I.

FERENCZI, S. O desenvolvimento do sentido da realidade e seus estágios (1913). In: FERENCZI, S. Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992c. v. II

FERENCZI, S. A introjeção (1909), vol. I. In: FERENCZI, S. Obras completas. Martins Fontes, 1992.

FREUD, S. O narcisismo. (1914-1916). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud [ESB]. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

GREEN, A. A loucura privada – Psicanálise dos casos-limite, São Paulo: Escuta, 2017.

GREEN, A. O trabalho do negativo. Porto Alegre: Artmed, 2010.

KLEIN, M. Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M. Inveja e gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1946. p. 17-43.

LACAN, J. Seminário 8. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2010.

OGDEN, T. H. Reverie e interpretação: captando algo humano. São Paulo: Escuta, 2013.

ANDRÉ AVELAR

Psicanalista. Membro da SPID. Doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Membro do GBPSF (Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi).

E-mail: andreavelar73@gmail.com


[1] O Dogma 95 é um movimento cinematográfico internacional lançado a partir de um manifesto publicado em 13 de março de 1995
na Dinamarca. Os autores foram os cineastas dinamarqueses Thomas Vinterberg e Lars von Trier.