O MAL-ESTAR DO DIVÃ OU O DIVÃ DO MAL-ESTAR?

Ninfa Parreiras

“Parece-me que todas as nossas tristezas são momentos de tensão que consideramos paralisias, porque já não ouvimos viver nossos sentimentos que se nos tornaram estranhos; porque estamos a sós com o estrangeiro que nos veio visitar; porque, num relance, todo o sentimento familiar e habitual nos abandonou; porque nos encontramos no meio de uma transição onde não podemos permanecer.” (Cartas a um Jovem Poeta, Rainer Maria Rilke ao poeta Franz Xaver Kappuz, p. 66, carta 8)

Estas palavras de Rilke parecem ter sido escritas há pouco dias, não em agosto de 1904. Em isolamento social, com a pandemia do COVID-19, desde março de 2020, temos vivido coisas que não conhecíamos e situações estranhas na nossa vida e, consequentemente, na nossa clínica. O divã fica em casa e a transferência está no ar. Se por zap, se por zoom, se por outra ferramenta, assim têm acontecido os atendimentos.

A transferência ficou à deriva, na indigesta sopa de Wuhan. Podemos pensar com Sigmund Freud (1856-1939): há um mal-estar do divã? Ou estamos diante do divã do mal-estar?

Temos medo de um microscópico ser que nos amedronta e desperta fantasias abandonadas nas gavetas, nos álbuns, nos arquivos, nos alimentos. Temos receio de tocar o outro/a outra. O toque está condenado ao isolamento. O medo brota da sombra, dos ruídos na comunicação, das falhas de conexão. A Internet é a Senhora da Casa e reina, em absoluto. Precisamos estar conectados e contamos com a tecnologia para (sobre)viver.

O que mais tenho escutado nas sessões individuais ou em grupos (de supervisão e de estudos) são queixas de um mal-estar: ‘em ficar em casa’; ‘em lidar com os aparatos tecnológicos’; ‘em comunicar-se via internet, celular e telas de aparelhos’; ‘em não poder encontrar pessoas’; ‘em ter que lavar mãos e desinfetar objetos e alimentos’; ‘em não saber quando vai rever a família e/ou amigos’; ‘em ter medo de tudo’; ‘em tomar quatro banhos por dia’; ‘em banhar as compras’… Estar em casa não parece tão seguro! Traz ambiguidades e desenterra os fantasmas adormecidos.

Desapareceram os signos não verbais da análise: a troca de olhares, os passos até o divã, o franzir de testa, o cheiro de suor, a água, o chá, o cafezinho, o ruído do ar-condicionado, os barulhos da respiração, os roncos na barriga, o pagamento presencial. Os silêncios da presença. Temos que reinventar os elementos de diálogo não verbal, que atravessem as telas virtuais.

Os dispositivos sensoriais foram reduzidos a uma tela fria, plana e a uma voz picotada por intervenções (dentro das casas de analistas e analisantes). Cães latem, portas batem, campainhas tocam, crianças pedem ajuda e até um nude de quem divide a casa com o/a analisante pode acontecer… As interferências de ruídos do zap, do celular que chama, do computador, alguém grita da cozinha, a descarga do banheiro… O paciente impaciente que se move pela casa. E com ele, o divã e a transferência se deslocam. Para onde?

A tela que treme, que passeia pelos cômodos em busca da Senhora Internet. O espaço, antes íntimo e privado, torna-se público, compartilhado. Por um lado, isso parece potencializar os egos e expandir alguma/s vaidade/s; por outro lado, ameaça diluir um trabalho analítico fadado a encontros virtuais e a virar uma terapia.

Como transformar os atendimentos via internet e via telefone em encontros analíticos? Como lidar com um divã que o olhamos vazio, mas que existe agora na casa de cada paciente que continuamos a atender? Como trazer potência às sessões virtuais?

Freud costumava atribuir a si mesmo a autoria de uma das principais feridas narcísicas que a humanidade sofreu ao estabelecer que “o Eu não é senhor em sua própria casa”. A existência do inconsciente e as suas consequências representam um golpe para a humanidade. Na conferência “Uma Dificuldade no Caminho da Psicanálise” (1917), ele relata três golpes narcísicos que acometeram os humanos. São três formas de destruição do narcisismo:

  • o golpe cosmológico (teoria heliocêntrica), de Nicolau Copérnico (1473-1543);
  • o golpe biológico (teoria da evolução e seleção natural das espécies), de Charles Darwin (1809-1882);
  • o golpe de natureza psicológica (a Psicanálise), do próprio Freud.

Estaríamos diante de um quarto golpe, com a pandemia e o isolamento social que paralisou todo o mundo e tem deixado cicatrizes abertas na sociedade e nas subjetividades? O que é isso que estamos vivendo?

A nossa racionalidade estabelece uma onipotência e uma prepotência que assustam. Somos mais determinados por aquilo que desconhecemos do que por aquilo que imaginávamos ter algum controle e domínio? Quando o mundo é atingido pela devastadora pandemia do COVID-19, com fortes impactos na vida social, familiar, ambiental e política, há, claramente, uma afetação no psiquismo de cada pessoa. A humanidade está tomada por mais uma ferida narcísica? O suposto saber torna cada vez mais atual (e necessária) a leitura da psicanálise tanto quanto o nosso trabalho analítico.

Eu já realizava atendimentos por videochamada, em viagens, e quando um paciente ia para um estudo temporário ou de mudança (até se adaptar e encontrar outra analista). Era algo muito pontual. Agora tem sido diferente. É no virtual que podemos trabalhar.

A princípio, ficamos com a porta do consultório entreaberta sem entender o que aconteceria, sentimento agravado por uma crise política e econômica no nosso país. E por um negacionismo da ciência e um descontrole dos governantes. vivemos semanas de incertezas.

Em 1919, Freud publicou o “Das Unheimliche” (com diferentes traduções: O Estranho/O Sobrenatural/O Inquietante). Pretendia discutir o sentimento de estranheza, a partir do conto O Homem de Areia, do autor alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822), publicado cem anos antes do texto freudiano. Como esse ensaio pode nos ajudar a entender a crise que vivemos hoje? É interessante pensar nas diferentes traduções, para ver se uma delas daria conta de acolher as angústias trazidas pela pandemia e pelo isolamento social: o estranho, o sobrenatural, o inquietante. Que ser é este?

No fim de 1919, antes da publicação, Freud menciona seu conteúdo numa carta de 12 de maio do mesmo ano ao seu colaborador, Sándor Ferenczi (1873-1933). Reescrevia “um velho texto”, e um rascunho de “Além do Princípio de Prazer”, publicado em 1920, estaria concluído. Os dois trabalhos dialogam entre si. Embora o segundo tenha mais destaque, no conjunto da obra, o primeiro traz ideias de relevância para a teoria psicanalítica, para a literatura, para as artes.

Conceitos como o duplo, a repetição (ou compulsão à repetição) e o complexo de castração, além do próprio termo que dá título ao estudo, são investigados por ele. Justifica seu interesse pelo campo da estética, não como a teoria da beleza, mas a das qualidades do sentir. Sugere que o psicanalista poderia se interessar por algum ramo particular dessa área, negligenciada na literatura especializada da estética.

Em 1913, ele se ocupou com o tema do estranho, antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). E o publicou depois do término do conflito. Decidiu retirar da gaveta o velho texto e reescrevê-lo, sob a ótica dos acontecimentos vivenciados pelo mundo.

Há dois caminhos para se encontrar exemplos de situações em que surge o sentimento do estranho. Ambos conduzem ao mesmo resultado: “O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (FREUD, 1989, p. 277).

Estar em casa, no isolamento social, é algo de muito familiar, mas também algo por demais estranho. Acercarse da solidão e dos fantasmas provoca sentimentos inenarráveis. O atendimento virtual é outra coisa estranhíssima e esquisita.

Relato e fragmentos de um sonho de um analisante: ‘A analista virou um avatar, uma personagem de filme ou de série. E as lacunas, os vazios, os brancos na agenda povoam as noites de sustos e de medos. Até o ponto de tratar um cavaquinho como uma pessoa. Ou conversar com o tanque, bêbado de água sanitária e de lysoform. O palco da vida é o sonho. E o divã está conectado aqui em casa!’

Depois de um estudo etimológico da palavra Unheimlich (em sua raiz contém a palavra Heim), que significa lar em alemão, Freud conclui que o adjetivo heimlich se refere a tudo que é doméstico, familiar, conhecido. Acrescenta outro significado, tudo o que deve ficar no âmbito do lar e da família deve ser ou deve ficar secreto. Com o prefixo un-, de negação, Unheimlich é tudo o que não é familiar, não conhecido, logo, estranho, mas também aquilo que não fica secreto.

Para seguir o caminho de Freud, com a literatura, lembramos O diário de Anne Frank, da jovem judia Anne Frank (1929-1945), relato dos dias em que ela passou com sete pessoas escondidas na Segunda Guerra Mundial, de 1942 a 1944, cujo título original era “O anexo secreto”. A ideia de um anexo remete ao diário, ao texto-desabafo, como algo além de si, que fala do ‘estranho’ gerado na adolescente, nos dias daquele esconderijo ‘secreto’.

Freud chama a atenção para a ambiguidade da palavra. Apresenta exemplos de situações que suscitam a estranheza. Cita exemplos com o sentimento do estranho, a dúvida quanto a saber-se um ser, aparentemente animado, estaria realmente vivo, ou se um objeto sem vida poderia estar animado. E acrescenta a estranheza causada por acessos epiléticos e manifestações de insanidade.

Tenho escutado analisantes que se pegam conversando com a vassoura, com o pote de álcool em gel, com o desinfetante. Duvidam da própria existência e começam a escutar ruídos raros, vindos do pano de limpeza, do balde. Tudo isso (produtos de limpeza e de higiene, objetos da casa) ganhou vida e está pessoalizado na quarentena.

No conto de Hoffmann, a figura do homem de areia arranca os olhos das crianças. O jovem estudante Nataniel relata, em uma carta a seu amigo Lothar (e irmão de sua noiva Clara), o encontro que teve há poucos dias com um vendedor de barômetros, Giuseppe Coppola. Nataniel acreditava ser o advogado Coppelius, a quem ele imputa a morte de seu pai, que ocorrera na sua infância, e com quem associa a figura do homem de areia.

Com dez anos, se esconde depois do jantar para tentar descobrir quem é o homem que visita o pai à noite. É descoberto pelo advogado, temido pelas crianças da família. Tem uma experiência traumática e associa a morte de seu pai, um ano depois, à presença de Coppelius, a quem liga diretamente à história do homem de areia.

Para Freud, o que traz o sentimento do estranho ao texto é o medo de perder os olhos (cegar-se? – grifo meu) associado ao complexo de castração, de enorme importância na vida mental dos pacientes neuróticos. Esse sentimento está linkado ao complexo de castração, como algo assustador que “remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (1989, p. 277), que “deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz” (1989, p. 280), pois são os temores infantis, recalcados no inconsciente, que vêm à tona em determinadas situações.

Ele procura outros exemplos do estranho, que podem ser atribuídos a causas infantis, não mais no conto de Hoffmann, ainda que continue a mencionar outras obras do autor alemão. O tema do duplo é o próximo a ser mencionado, juntamente com o da repetição.

O duplo é uma criação que data de um estádio mental primitivo, há muito superado, projetado para fora pelo ego, como algo estranho a si mesmo. Outras formas de perturbação do ego, exploradas por Hoffmann, poderiam ser avaliadas pelos mesmos parâmetros do tema do duplo, como um retorno a determinadas fases na elevação do sentimento de autoconsideração, regressão a um período em que o ego não se distinguira ainda nitidamente do mundo externo e de outras pessoas, o que parece ser, em parte, responsável pela impressão de estranheza.

A repetição é outro tema que suscita a sensação do estranho. Pode ser fruto de coincidências ou superstições, ligadas à onipotência de pensamento. Isso conduziria à antiga concepção animista do universo, que remete às crenças primitivas reprimidas pelas pessoas, e podem retornar em situações da vida.

Freud apresenta temas ligados ao medo da morte, à bruxaria, à epilepsia e à loucura, entre outros. Todos os exemplos de estranho, ou remetem a “complexos infantis que haviam sido reprimidos” e “revivem uma vez mais por meio de alguma impressão”, ou a “crenças primitivas que foram superadas”, que “parecem outra vez confirmar-se” (1989, p. 294).

No isolamento social, seria oportuno pensar no estranho, nos diferentes aspectos discutidos por Freud: como familiar-esquisito, como a repetição de algo desconfortável, como o duplo desconcertante. Escutamos de analisantes: ‘o fluxo de sonhos ampliou’ (a repetição); ‘o medo do COVID-19 se expande aos cuidados e aos protocolos do isolamento e aos ruídos da casa’ (o familiar assustador); ‘um outro de mim parece tomar conta de tudo’ (o duplo). Para quem permanece em análise, por videochamada ou por telefone, o trabalho analítico segue. Mas alguns atendimentos em processo de análise viraram uma terapia, tamanho desespero e depressão habitam as casas. E agora, Sr. Divã?

No ensaio “A Transitoriedade”, publicado em 1916, Freud retomou a ideia nuclear de uma das suas obras mais importantes – “Luto e melancolia” ([1915]1917). Apresenta um passeio por uma rica paisagem num dia de verão, em companhia de um amigo taciturno e de um jovem poeta já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário que os rodeava, mas não se alegrava com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Aquilo que ele teria amado e admirado lhe parecia despojado de valor pela transitoriedade que seria o destino das coisas e das pessoas.

Ele observa que a preocupação com o caráter perecível do que é belo e perfeito pode dar origem a duas diferentes tendências psíquicas: uma conduziria ao doloroso cansaço do mundo (trazido pelo jovem poeta), e a outra, à rebelião contra o fato constatado.

Freud alega que essa exigência de imortalidade seria um produto dos nossos desejos, por mais doloroso que seja constatar que tudo perece, há de se admitir que a vida é transitória e a exigência de imortalidade não pode reivindicar um direito à realidade.

Na crise do COVID-19, observamos a dificuldade que as pessoas têm em lidar com a questão da incompletude, da impossibilidade de existir sem perecer. Podemos refletir sobre isso aplicado aos dias atuais. Freud se refere ao taciturno amigo e ao jovem e talentoso poeta como “espíritos sensíveis”. Tanto para um quanto para o outro, a transitoriedade, a perecibilidade, retiravam o valor da vida e, ali onde se poderia encontrar a alegria, havia a tristeza e a revolta.

Freud não se dispôs a discutir com o poeta e seu amigo a respeito da transitoriedade que se coloca para todos. Dispôs-se a negar ao poeta que o caráter perecível do belo implicasse sua perda de valor. A seu ver, isso seria um aumento do valor.

No artigo “O Secreto Coração de Hipólito”, de Hélio Pellegrino (1924-1988), ele vai lembrar que, diante da angústia da morte e do enigma da existência, o sujeito reage e revela o seu maior problema – sua questão existencial. Isso se aplicaria aos dias atuais e às angústias geradas pela pandemia do COVID-19. A dúvida, a angústia de existir, o medo da morte. O que vai acontecer com tudo isso?

E podemos associar a O nascimento da tragédia, de Friedrich Nietzsche (1844-1900). Ele traz o povo grego como dotado para o sofrimento e para a intuição da tragédia da existência. Argumenta que essa sensibilidade pode se tornar uma ameaça à vida. Alcançado o ponto máximo da dor de existir, o sujeito pode encontrar respostas para lidar com o sofrimento. Nietzsche vai exemplificar esse problema ao recorrer à forma com que Sileno (suposto possuidor da inspiração profética) responde ao rei Midas sobre o que melhor conviria à humanidade.

Encontraríamos aí a questão que deu origem à arte grega e, em particular, à tragédia grega. Sileno apresenta duas respostas ao rei Midas: na dimensão dionisíaca, com o Dionísio arcaico da orgia, da desmesura, do descomedimento, da desordem. Ele levaria à volta à natureza e suas consequências. Na outra dimensão, estaria com o Apolo, deus da bela aparência, do sonho, da razão. Na segunda, o homem poderia curar-se do horror à existência. Com isso, as paixões (o amor, o ódio, a violência, a piedade, a vingança e a transgressão) seriam revestidas de uma dignidade que serviria à vida. Com Apolo, a sentença de Sileno passaria por uma inversão e a pior desgraça seria o não ter nascido e o pior dos males, o morrer depressa.

Podemos indagar: como a psicanálise se situa em face do que atinge o humano no âmago do seu ser, habitado pela linguagem? Como lidar com a falta, com o furo? E a incompletude? E a imprevisibilidade que enfrentamos mundo afora?

Nos seus “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud se refere a uma situação de desamparo, da dor de existir, que se coloca para o ser falante. Diferentemente de Nietzsche em O nascimento da tragédia, vai trazer aqui não o homem sensível (o grego antigo), mas a criança. Ele nos mostra que o encontro com o mal-estar se dá muito cedo, na infância.

Ante o enigma da existência, a criança se vê desafiada a encontrar saídas e, como um pequeno lógico, deve buscar respostas para os desafios. Nas suas perguntas sobre os enigmas do sexo, do gozo e da morte, a criança inventa teorias, que, embora “fictícias”, costumam revelar um quê de verdade. Para Freud, não é de maneira arbitrária que a criança encontra as suas teorias. Elas chegam por força da pulsão. Curioso pensar como a criação literária para a infância dá voz a essas teorias inventadas e ficcionais. É o infantil que dá voz ao poeta, ao escritor, ao artista. Onde estaria a criança freudiana nesta pandemia? Precisamos ressignificar nossa clínica a partir desse infantil.

O “doloroso cansaço do mundo” ao qual Freud se refere em “A Transitoriedade” chega hoje como tristeza, tédio, preguiça, falta de interesse, abatimento, depressão, desespero, negacionismo… Isso modula as manifestações de um desejo que se esgota. Ou de uma falta a não ser preenchida. Ou um luto negado.

Para Freud, o contrato social pode ser fonte de angústias. A renúncia de nossas pulsões (desejos) teria como resultado direto a constatação de que a sociedade fracassou em proporcionar a felicidade que se espera dela. Ele desconstrói a idealização do contrato social, ao denunciá-la como ingênua e insatisfatória para explicar os arranjos sociais. A compreensão disso é marcada por um ceticismo perturbador. Ele descortina as tragédias e as possibilidades da cultura e uma suposta moral.

Com a depressão econômica de 1929 e a ascensão do nazismo na Alemanha, Freud denunciou um conflito do homem com a civilização, opôs liberdade e imaginária igualdade. Ao fim da vida, sua fuga de Viena traduz os fracassos do nosso mundo. Este é o grande tema de Das Unbehagen in der Kultur (1929), traduzido como “O Mal-Estar na Civilização”, “O Mal-Estar na Cultura”, ou “A Civilização e seus Descontentes”.

Ele critica os conteúdos simbólicos da vida civilizada, assunto aprofundado em “O Futuro de uma Ilusão”. A vida social é fonte de sofrimento, bem como a nossa impotência com a natureza é também justificativa de sensação recorrente de abandono. Estamos desamparados. Quanto à constituição da sociedade, as leis que criamos não se destinam, necessariamente, ao bem comum que as justificaria. A cultura é a razão de nossa infelicidade, e não a nossa redenção.

Neste sombrio ensaio, sobre os destinos da humanidade, ele tece algumas considerações sobre a sua percepção do significado da cultura. Entendida como uma prodigiosa sublimação, ela seria um produto da impossibilidade da realização dos desejos inconscientes mais profundos e uma barreira eficiente para impedir o afloramento das tendências agressivas dos humanos.

A civilização que nos cerca, apesar de sua aparente solidez, está à beira de uma desintegração, devido à hostilidade primordial que provoca um eterno conflito entre as pessoas. O mundo caótico, primitivo e bárbaro que nos habita, precisa ser domado e canalizado por uma força cultural que coloque as pessoas num convívio social mais pacífico e produtivo.

A vida em sociedade nos traz uma neurótica insuportabilidade da frustração. A apreensão do que seja propriamente cultura é difícil, embora necessária para que possamos compreender. Ao contrário da percepção convencional, de que a associação humana visaria ao bem comum, ele contrapunha a imagem de que a comunidade era força coletiva que subjugava força individual.

A renúncia poderia trazer algum ganho, se tomada no contexto de uma tentativa de compreensão de nossas limitações. Ao pensar com Freud que umas das principais tendências da cultura é aglomerar os seres humanos em grandes unidades, como discutir o isolamento social? Nosso modo de vida exige referenciais. Por meio de tabus, leis, costumes, são estabelecidas outras limitações que atingem crianças, homens e mulheres – todxs. E agora, como viver em isolamento e evitar aglomerações e ajuntamentos de gente?

Palavras como pandemia, doença, vírus, quarentena, isolamento, confinamento e distanciamento social viraram parte do nosso vocabulário diário. E ainda as reuniões virtuais, as lives, os aniversários e festas por videochamada, as aulas virtuais, os chats por celular por um motivo ou outro. As máscaras, o frasco de álcool em gel, as luvas foram incluídas ao nosso armário. Quem pode, fica em casa. E agrega, à rotina, um novo modo de vida atrelado à tecnologia, à Senhora da Casa – a Internet.

Isso tem mostrado territórios públicos, por vezes, esvaziados. E as casas plenas, com novas (e nem sempre fáceis) dinâmicas de convívio e organização. Há, também, um contingente considerável de pessoas atravessando o período de isolamento social sozinhas em casa, ‘com saudade de ver e tocar gente’, ‘com angústia da solidão’, ‘com a tristeza do estar só’, ‘com medo de sua própria sombra’.

A nova realidade parece não ter prazo determinado para acabar, testa as emoções, a saúde psíquica, os afetos, a empatia e a criatividade de todxs. É o pausar para um próximo passo que ninguém sabe dizer como e até quando será.

De dentro de casa, nos reinventamos, nos atendimentos, numa linguagem menos fria, que atravesse o virtual e crie tato e afetação. Tentamos construir encontros, criar espaços de análise possível. Ressignificar a palavra e o olhar e o escutar as telas e os fones.

A personagem Alice, na obra Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (1832-1898) emprega inúmeras vezes as palavras “confusa”, “estranha”, “esquisita”, “diferente” para expressar seus assombros sobre o que sentia sobre si mesma naquela aventura. Talvez sejam palavras que podemos mesmo falar sobre o nosso não saber nesta crise pandêmica. Como traduzir, em palavras, o sentimento de estar em casa, no isolamento social:

“Acho que infelizmente não posso me explicar, minha senhora”, disse Alice, “porque já não sou eu, entende?” (em resposta à Lagarta, no capítulo V).

REFERÊNCIAS

CARROLL, L. Alice: edição comentada: aventura de Alice no País das Maravilhas & através do espelho. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

FREUD, S. A transitoriedade. In: FREUD, S. Obras completas. Tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. XII.

FREUD, S. O estranho. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1989. v. XVII.

FREUD, S. O mal estar na civilização. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução Jorge Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1989. v. XVIII.

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução Jorge Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1989. v. V.

FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução Jorge Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1989. v. XVII.

HOFFMANN, E. T. A. O homem de areia. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
PELLEGRINO, H. O secreto coração de Hipólito. In: PELLEGRINO, H. A burrice do demônio. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Tradução Guinsburg. São Paulo: Schwarcz, 1999.

RILKE, RAINER M. Cartas a um jovem poeta. Tradução Paulo Rónai. São Paulo: Globo, 2001.

NINFA PARREIRAS

Psicanalista, membro titular da SPID, professora de Literatura, escritora e produtora cultural. Mestre em Literatura Comparada (USP).

E-mail: ninfaparreiras@gmail.com